sábado, 29 de novembro de 2014

Que será será

Amanhã fará precisamente três meses que lancei os dados, empurrei o marido rumo ao sul e me encastelei no nosso castro alugado. Aproxima-se o dia em que iremos saber se todas estas fichas foram bem apostadas: se ganharemos uma vida com a qual sempre sonhamos, perto do mar e com um salário que nos permitirá pela primeira vez estarmos mais folgados ou...nada. Se vamos observar apaticamente que a vida nos raspe as esperanças todas de uma só vez. 
Acordei mais rabujenta do que nunca, com um frio que não me saiu do corpo nem mesmo com um banho quente. Às vezes acredito estar em alguma espécie de show da vida tal como naquele filme do Jim Carrey. Parece tudo tão artificial, as pessoas com quem troco um bonjour, que sorriem apenas porque a polidez as obriga, as que esbarro na entrada ou saída da escola. Parece tudo um plano para ver até quando vou aguentar este isolamento auto infligido. Alterno raiva e impaciência. Não nasci para esperar e detesto não ter controle sobre o destino. É verdade que fazemos escolhas, mas há uma grande parte em que ficamos à deriva de nossas próprias expectativas. Iremos a bom porto ou de encontro a uma tempestade furiosa? 
Em meio a uma ansiedade que não me deixa, entrego-me sem cerimônia aos doces e já tenho alguns quilos a mais para se juntarem aos outros, seria mesmo sensato pensar que estou de esperanças. Ou de medo ou os dois... gêmeos que dividem o mesmo corpo e me sugam com igual intensidade. 


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Das coisas que detesto

L
Eles partilhavam listas. Não partilham mais.


Listas. Listas sem fim. E pessoas que acreditam nelas. As dez coisas que não se deve dizer para o namorado; as quinze coisas que nunca devemos dizer para os filhos, para a mãe, para a sogra, para o cachorro, periquito, para a vizinha que tem tara que é uma atriz pornô. E são sempre coisas óbvias, tipo não devemos ter uma DR* depois do marido bater com o mindinho na quina da porta. Não devemos xingar a sogra de hummm...qualquer dos nomes queridos que nos passem pela cabeça. Não devemos dizer que o Aroldinho não estaria aqui (#benzaDeus) se não tivéssemos tomado aquele antibiótico que terminou por cortar o efeito do anticoncepcional. Oh céus se nos escapa alguma alarvidade pela boca, vai ser um traumatizado pelo resto da vida, um daqueles quarentões que vão me trazer meias sem pares para lavar, cuja sorte amorosa estará em minhas mãos! Começo por apresentar a do 704 que tem mais pelos de gato do que... Não, péra. 
E as coisas que devemos fazer antes de morrer? Skibunda em alguma praia do Nordeste, sexo selvagem com um desconhecido, gastar o décimo terceiro com sapatos, lançar um blog fashion adviser. E logo eu que odeio blogs fashion adviser! 
E a lista de coisas para ser feliz hein? Hein?! Quem diria que comer panqueca com frutinhas de mato ia me fazer tão realizada... "Tire momentos a sós". E tudo o que uma mãe pensa é que vai ser o máximo poder fazer cocô sem ninguém a dizer a cada cinco segundos: blérc! Mas como faz? Já inventaram um WC bunker? 
Obviamente não podemos esquecer da lista para um corpo perfeito! Beba água! Coma de três em três horas, corte frituras! Corte refrigerante! Corte doces! Corte os pulsos! 
As únicas listas de que verdadeiramente gosto são as de sugestões de lugares turísticos, de resto passo bem sem estes conselhos. Só tenho receio de que letras minúsculas tragam aquelas coisas de que se não passarmos esta lista idiota para doze pessoas, vamos queimar no inferno cibernético, ter a nossa conta de e-mail deletada, ninguém mais irá aceitar nossos pedidos de amizade, nem curtir as nossas selfies com bico de pato. O Armagedom de nossos tempos nos tornará mais ignorados do que testemunhas de Jeová em manhãs de domingo, nos deixará em um completo e indefinitivo ostracismo virtual! 


* discutir a relação.

Porque atendimento ao público nunca seria uma boa para mim

http://youtu.be/N4ONTLM-5BA

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Há emigrantes e emigrantes

Ouvindo a minha vó contar sobre uma amiga portuguesa da época obviamente de quando minha tia vivia em Portugal, quase fiz aquele suspiro de pesar. Oh, coitada, vai ter de sair do país dela e tudo...sei como é! Mas a vó continuou dizendo que ela já estava morando no Rio e que inclusive estava aos poucos se instalando em um apartamento...no Leblon. 



Poker face do outro lado da linha, mas a vó não percebeu. Depois de um longo silêncio, ainda disse embasbacada: tem certeza vó, só no Leblon?!" Só" o cenário preferido das novelas do Manuel Carlos em que uma Helena desfila num doce balanço a caminho do mar? Tá bem então! Parece que o marido dela vem como um dos diretores da Oi, empresa de telefonia brasileira...

                                                                     ***
Ontem estava acompanhando uma discussão em um fórum de brasileiros em que uma mulher casada com um francês estava sofrendo muito com a proposta que tinham feito ao marido. Acontece que ele é diretor de uma empresa que implantou uma sede no Brasil (diz que por ideia do próprio) e agora lhe ofereciam a oportunidade de gerí-la por três anos. Três anos em que pagariam um salário maravilhoso, manteriam o alto padrão de vida ajustado aos custos da cidade de São Paulo que é caríssima, pagariam escola para suas filhas. Mas não uma escola qualquer, e sim a melhor escola da cidade, arriscaria dizer do país, uma internacional com ensino em francês além de inglês. E não satisfeita, a mulher torcia para que o marido se desse mal com os futuros colegas e detestasse viver no Brasil, pois ele poderia voltar a qualquer momento e reocupar o cargo deixado na França.
Quisera eu ter sido um destes tipos de emigrantes, aos quais é reservado o direito de reclamar das banalidades da vida, e olha que até me considero bem sortuda. Nunca passei fome nem precisei enveredar pela chamada vida fácil que de fácil não tem nada. Já dizia Zeca Pagodinho "na vida coisa mais feia é gente que vive chorando de barriga cheia". 

Blogger

Duas coisas a dizer:
1- Que merda é esta de por três fontes diferentes nos meus posts?? O aplicativo do Blogger é um doido, sempre me faz isto!

2- Parece que para comentar blogs temos de provar que não somos um robô digitando alguns números. Já tentei tirar isto do meu, mas é impossível. Supostamente esta medida serviria para mantê-los afastados, mas ou um robô conseguiu se passar por gente ou isto não adianta de nada, pois tenho spam na mesma.

Que tipo de mãe você é?

Mãe carrasca!
Sabem aqueles testes idiotas do facebook? Pois é. Desde que o pai se foi há mais ou menos três meses, que o Fabian tem estado a travar uma guerra aqui em casa: a do almoço. Eu sempre disse que não ia ser daquelas mães que ajoelham e pedem por favor para que coma mais uma colherinha. E realmente não sou, sou do tipo que berra, que faz negociações natalícias (no estilo papai Noel está vendo isto!), que chantageia (vou desligar a tv!) e finalmente, do tipo que sacode os ombros. Não quer comer? Azar o teu! Hoje foi para a escola no período da tarde sem ter comido nada mais do que uma colher que por muito custo enfiara na boca. Mas foi muito bem avisado de que quando retornasse não iria encontrar a mamadeira quentinha de sempre, ao invés disto, eu prometi esquentar novamente o almoço recusado e nada mais.  Ainda lhe disse que esta era a primeira e última vez que faria isto, pois há três meses ando a brigar no momento em que mais quero sossego. Amanhã se ele voltar a fazer fiasco, fica sem comer e quando voltar vai comer fruta, e eu só esquento o prato do almoço na hora de jantar. 
Sinceramente não queria tomar estas atitudes, mas eu sinto-me esgotada e sozinha...não há ninguém que possa me tirar o peso de ter uma criança birrenta para eu arejar a cabeça. Muitas, muitas vezes chego no meu limite...e não quero fazer como uma conhecida em que a filha alimentava-se somente de pipoca. O caminho da educação não tem verdades absolutas, bem sei, mas devemos desconfiar quando as coisas são fáceis demais tão e somente porque não queremos nos incomodar...

sábado, 22 de novembro de 2014

Saudades eternas

Dos cabeleireiros do Brasil. Sério, é a última vez que assassinam os cabelos do Fabian. Tadinho...
Acho que a especialidade deles é a franja da Angelina Jolie em "Garota Interrompida". 
Ou aprendo a cortar cabelo ou entramos daqui uns tempos no livro dos recordes de  maior juba do mundo.



quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Update filmográfico

Stonehearst Asylum


E se os loucos dominassem o hospício? E se os médicos fossem presos durante tempo suficiente para enlouquecerem? 


Costumo brincar dizendo que dificilmente vejo mais do que um filme marcante por ano. A maioria é uma porcaria apenas para passar o tempo, alguns gatos pingados são dignos de um espaço na minha memória; agora aquele filmaço que mexe comigo e me põe a questionar a vida, ah, este dá-me tanta alegria que se torna impossível guardá-lo só para mim!
Stonehearst é uma adaptação de um conto de Edgar Allan Poe, ambientado no século 19 em uma Inglaterra fria e cheia de bruma.  Numa época em que a loucura era mais do que um estigma mental, tornando-se socialmente rechaçada, os doentes que padeciam deste mal eram trancados em lugares ermos, isolados como se fossem portadores de qualquer coisa muito contagiosa. Os métodos para a cura passavam por choques, banhos de água fria, camisa de força, isolamento total. Tais métodos poderiam muito bem serem mais eficazes para enlouquecer do que para o propósito a que se destinavam. 
Esta é uma obra inteligente, daquelas que colocam o dedo na ferida e deixa-nos com um certo incômodo filosófico.  O que é loucura? Seríamos nós naquele tempo considerados loucos por alguma particularidade que hoje é tida como natural? Sabendo que seu conceito é fluido e que já abrangeu tanto a homossexualidade quanto o simples ensejo de prazer por parte das mulheres, a loucura não deixa de ter um papel na nossa sociedade. Tal como os gregos diziam que era necessário haver escravos para que o homem livre possa saber-se livre, é necessário existir a loucura para que se possa perceber a sanidade. 


Hysteria

Doutor, mais um pouquinho para a direita, não, mais para cima...mmmm isto, ai.. oh...

Novamente a Inglaterra sob pano de fundo para esta comédia (na verdade eu vejo como tragicomédia porque a vida sexual feminina naqueles tempos é de chorar), um jovem médico frustrado com a teimosia de seu antigo superior, resolve mudar de especialidade e acaba em um consultório a tratar de mulheres histéricas. 
Antigamente pensava-se que as mulheres eram temperamentais, inseguras, agressivas, tudo por possuírem um útero (hystera em grego).  A histeria era uma condição tão abstrata que se poderia  manifestar qualquer comportamento e/ou condição física para ser diagnosticada como histérica: apatia, palidez, cólera, frigidez, vontade de fazer sexo, dor de dentes, desmaios, etc. O tratamento variava entre sessões de hipnose, consulta psiquiátrica e masturbação profissional, sendo que nos casos mais graves optava-se  pela retirada do órgão. 
Mentalidades dominadas pela ideia do sexo como um ritual sagrado, pela vergonha, culpa e sofrimento pelos desejos reprimidos: à mulher basicamente não permitia-se sentir prazer. Fico pensando como era as dondocas tão cheias de pudor a arreganharem as pernas para o médico fazer-lhes uma "massagem na vulva". A cura através de um orgasmo. Casto. Legitimado por uma questão de saúde física e mental da paciente. Chega a ser tão caricato que é difícil acreditar que tenha acontecido.
Em meio a isto, o novato depara-se com a filha mais velha do seu patrão: um caso incurável de histerismo beirando à loucura. A jovem benemérita passa o seu tempo a ajudar os mais necessitados, sonha com o voto feminino e a igualdade dos sexos mas, que pela rudeza do pai em não aceitar suas escolhas, grita e o enfrenta. Histérica. Este era o diagnóstico dado a qualquer mulher que ousasse requerer seu  espaço em uma sociedade dominada pelo homem. Um filme para pensar... Ainda que a mulher possa votar, frequentar uma universidade, escolher com quem irá se casar, será mesmo que superamos esta visão tão século 19? Ou ainda somos tachadas de pouco racionais, emotivas, justificando-se tais características pela fisiologia feminina seja através da crença de cérebro distinto, seja pelo ciclo menstrual?  Por que esta suposta instabilidade é fortemente ligada à negação de uma vida sexual plena? Por que qualquer coisa é motivo para ofender de mal amada ou mal comida ou  pior, soltar a famosa expressão "isto  só pode ser falta sexo"?
 De qualquer maneira, um grande chupaaaa para Freud e suas teorias do ciúme do falo: há por aí de todos os tamanhos e cores (e com várias velocidades também). Este filme conta acima de tudo, uma história sobre a compensação feminina e a busca pelo protagonismo de seu prazer. 




Você percebe que está com falta de sexo quando...

Olha para esta foto no facebook e pensa se o marido não se importará.




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Bla bla bla meritocracia

Tem gente que parece que vive em uma eterna propaganda L'Oreal: porque eles merecem!


Eu já estou tão cansada de dizer o óbvio, mas parece que ainda é preciso. Quando falo que o Brasil deveria ser um país de bem estar social, e que fico feliz com algumas medidas afirmativas  (embora estejam longe do ideal, são muito mais do que grande parte da população já teve), não estou falando em premiar os que nada fazem. Dói ver alguns conhecidos estufarem o peito e dizerem: estou aqui onde cheguei por mérito próprio. E dizem-no enquanto rosnam contra as cotas para os pobres, negros e índios nas universidades públicas, contra as bolsas que o governo oferece para que os pobres ponham as crianças na escola ao invés de estarem nos semáforos a pedir dinheiro. Dói e não só dói como dá vontade de falar que merecem sim, uma ova ou um ovo (podre) nesta cara. 
Ao dizerem que merecem estar ganhando quatro, cinco mil reais, ir a Miami ou andar em um carro zero por fruto de seu trabalho, estão agindo como esquizofrênicos sociais. Mais ou menos isto:  dois obesos necessitam emagrecer. Enquanto um tem dinheiro e faz uma redução de estômago, o outro tem que penar, passar fome, caminhar na rua ouvindo "lá vai o botijão", olhar muitas vezes frustrado para a balança que não baixou quase nada. Depois de meio ano, o gordo que fez cirurgia emagreceu trinta quilos, enquanto que o outro com muito esforço perdeu dez. Ah mas a culpa é dele que é preguiçoso! Podia ter levantado mais cedo e aumentado em duas horas o treino de cardio. São assim, estes queridos amigos e conhecidos que pensam com tal arrogância que chegaram onde estão por mérito tão e somente deles e dos pais que trabalharam para que pudessem receber uma boa educação. 
Há por aí uma charge que infelizmente não encontrei... trata-se de duas crianças, uma está em cima de um livro roto no qual está escrito "ensino público", e tem um homem a olhar para ela dizendo que não consegue alcançar o sucesso porque não se esforça o bastante. A outra está em um plano elevado por uma dezena de livros, em que se lia coisas como "tempo livre", "aulas de inglês",  "cursinho de vestibular", "intercâmbio", "ensino privado", etc, etc. Ao seu lado estão seus pais a vibrarem e a seguinte mensagem: vai lá, filho! Você merece! 
Não quero dizer que é mau ter tido a oportunidade que tivemos, mas que é cinismo esquecer de que somos privilegiados. Ora, encontramos a estrada pronta e asfaltada, sendo uma escolha nossa percorrê-la ou não. Enquanto outros tem-na esburacada e cheia de interrupções, pedágios e obstáculos, culminando em subempregos mal remunerados. Como disse a atriz Thaís Araújo (uma das poucas atrizes negras da Globo), "não há nada de errado em ser doméstica, o problema está em sê-lo por falta de opção". E é aí onde quero chegar: quando as chances de crescimento se equipararem para todas as classes sociais, cujo ponto de partida passa a ser o mesmo, só então poderemos falar em mérito por uma ascensão social e/ou econômica.  E não me venham lá com a história do Silvio Santos contada como se fosse novela mexicana: de camelô a dono de emissora de tv. Porque a única coisa que a meritocracia faz, é premiar os que já estão na ribalta, com a papinha mastigada, e sendo bastante realista, são estes o que na verdade menos se esforçaram para chegarem onde estão.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Fabionices

Ao ver eu trocar a lâmpada queimada, o Fabian disse: 
"Sabia que na nossa casa é a felicidade que faz tudo funcioná?"
Acho que ele quis dizer "eletricidade", mas bem que seria interessante pagar a conta de luz com sorrisos e abraços. (Só não sei se a Énergies Strasbourg ia achar graça).


                                     ***


Mãe, a chuva cai quando a nuvem se sacode? E sai água pra cima e pra baixo também?



                                     ***

Mãe, podemos fazer un gateau d'anniversaire no Natal para o Père Noël comer na casa dele? Ele vai gostar muito! *


* Não sei o que andaram dizendo na escola, mas ele esta pensando que quem nasceu neste dia foi o Papai Noel...

O Bisa ( ou vô Schuch como eu chamava)

Você disse bala? Não sei de bala nenhuma.


Houve um tempo em que o meu bisavô morou com os meus avós. Lembro-me pouco dele, cada vez que tento mentalmente desenhar o seu rosto, é como se existisse um filtro destes de instagram que deixam tudo embaciado. Ele quase não saía de casa, tinha uma poltrona de couro escuro recostada na janela, da qual conferia cuidadosamente a obra do que mais tarde seria o prédio da Policia Federal no outro lado da rua. 
Meu bisavô tinha os olhos azuis que passara em molde a minha vó e o corpo magro de ossos largos como o dela. De maneira que hoje olhar para minha vó,  é reconhecê-lo através deste véu. Dizem que era tão austero e seco, o alemão, que nem as filhas, nem os cinco netos um a um foram capazes de amolecer aquele mau gênio. (Mas que eu o fiz). Sinto-me orgulhosa disto, embora não saiba muito bem o porquê nem como.
 Lembro-me de pedir-lhe balas de menta; "bainha fóti". E que ele me dava sempre, para o desespero da minha mãe, mesmo antes do almoço. Mas eu prometo que como tudinho, eu chorava. Minha mãe tinha já a enorme mão branca estendida em direção a minha boca. Momentos antes, o meu dilema era se escondia na curva do céu da boca e falava "mmmmm mmmm" ou se a punha para um dos lados e respondia a desafiar à mãe, que não, imagina, eu não tinha comido bala. E a sua expressão a encarar a filha boca-de-hamster oscilava entre a irritação e o esganar de um sorriso. 
Um dia meu bisavô foi para um asilo e de lá não retornou. Fui visitá-lo uma ou duas vezes, mas achava estranho tanta gente velhinha junto e o modo como me olhavam saltar e correr, tinha a impressão que incorporava muitas figuras de seu passado. Quem sabe uma filha ou neta ou até mesmo eles quando ainda tinham as pernas ágeis e o fôlego quase infinito. 
Meu padrinho conta que o bisa nunca deixava os bolsos da camisa vazios, havia sempre uma bala de menta para mim. Houve muitas balas enquanto ele morava naquele apartamento, sentado à janela. E quando morreu eu não pude vê-lo, mas não chorei, nem perguntei nada. Foi a primeira vez que encontrei com a morte, vi-a de muito longe...a segunda vez foi de lado, a terceira de frente e a quarta de raspão. Todas doeram de uma maneira distinta. Embora eu naquela época com a idade do meu filho não soubesse precisar o quanto podia ser definitiva, esta deixou-me um gosto na boca, ou a falta de um sabor de menta...

sábado, 15 de novembro de 2014

Tipo "Ensaio sobre a cegueira" ou Walking Dead mesmo

Chego no mercado com a minha carrocinha que é como eu chamo aquela sacola com rodinhas e vejo um cenário catastrófico, digno de filmes de apocalipse zumbi. Prateleiras vazias, algumas sem nenhum artigo. Agitação dos funcionários estoquistas: nunca, nunca, nunca vi coisa igual. Será que lançaram alguma promoção ao estilo pague um e leve três? E eu que só queria comprar pão... não tem. Mas e salgados? Não tem. E bananas? As únicas coisas que jaziam ali eram batatas e alfaces. Lá consegui salvar um pack de iogurtes agarrando-o como se fosse um tesouro esquecido. É meu, ninguém me tira! Lancei um olhar desconfiado em roda da ala dos congelados.
 Dirigia-me ao caixa quando li em um dos cantos da prateleira um bilhete impresso em letras ordinárias: no sábado, dia 15, esta loja irá fechar às 16 horas. Mas por quê??? Olhei para o relógio e percebi que faltavam apenas cinco minutos. Perguntei à funcionaria enquanto ela me estendia uma dezena de moedas, por que estavam fechando tão cedo. Acontece que iam mesmo se mudar, coisa que tinha esquecido depois de ter sido marcado para outubro e nunca mais mencionarem fazê-lo. Pois agora era assim? Não põem um aviso na porta duas semanas antes, nem isto nem o novo endereço do mercado? Não duvido nada de que aquele aviso tenha sido plantado na véspera ou quiçá no próprio dia. Irrita-me muito esta historia do "se virem" aqui na França. Dá-me vontade de dizer que isto não funciona no comércio onde o cliente é como um bebê que adora ser bajulado e carregado ao colo. No Brasil este setor de marketing ia mirrar à fome. Querem ver que a lógica é o cliente sair por seus pés a adivinhar para onde é que o Simply foi? Oh, claro que já estou me vendo fazer isto, vou é no Lidl isto sim!

Sexy Yemanjá

Está aberta a temporada de fotos  de pés na areia, da ostentação de quem tem um pedaço para a cadeira e o guarda-sol, sim que isto do sol nasce para todos é verdade: tanto para os que vão para o litoral quanto para os que ficam a torrar nos quarenta graus de Porto Alegre (ou Forno Alegre como é mais conhecida por estes meses de verão). E isto só me faz aumentar a ansiedade de ir morar novamente perto do mar. Vêm-me musicas solares, ainda dos tempos de infância, de quando desejava que a minha mãe esquecesse de me tirar da frente da tv na hora da novela das seis.  
Creio que a minha memória musical é ainda melhor do que a visual e ultimamente tenho me "enliado"* em canções antigas e as ouço em looping, às vezes mais alto do que costumo. Já não tenho tanto cuidado com os vizinhos que resolvem discutir a relação da meia noite até a uma da madrugada com direito ao homem esmurrando a porta e estar mais de dez minutos a massacrar a campainha, enfim. Fodam-se, que ouçam eles também. 
A música tem sido uma parte importante nestes momentos de solidão, tenho necessidade de escutar a minha língua, quase como se duvidasse da minha capacidade de retê-la, como se não quisesse esquecer-me de quem sou. Sempre achei este processo de adaptação moroso e dolorido... Até quando estou me adaptando e até quando estou me aculturando? Ainda não consigo escutar nada em francês, com exceção de duas músicas, nem tenho interesse de procurar algo que me agrade. 
Começo com Sexy Yemanjá, tudo a ver com o mar, viajo para escutar a voz rouca do Fernando cantando "Apesar de você amanhã há de ser outro dia" enquanto distraidamente seca a louça, volto para Chega de Saudade, passo por Espelhos d'agua (que vontade de perguntar se ainda é cedo)...E termino com Maluco Beleza controlando minha maluquês misturada com minha lucidez. Posso dizer que já estou em outro nível de loucura: nem falo mais com os meus amigos imaginários, estamos de mal. Deu para notar que pensei em falar sobre uma coisa e terminei com outra, mas no fim, acreditem que está tudo ligado. A loucura. A solidão. Os pés no facebook. 




*enlaçado à moda da minha terra.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Onde está Wally?


E estando novamente nestas andanças de percorrer sites de imobiliárias em busca do "tal", tenho observado o pior drama de um corretor: espelhos! Coitados, fazem de tudo para não aparecerem, mas lá fica o registro de um pé, um topo de cabeça, a mão com a câmera piscando em flash. Alguns arriscam posições de yoga, formando um arco com as costas, malabarismos que me fazem pensar que tem um segundo emprego no Cirque du Soleil (são canadenses, eu sei, mas vá que?). 
Tentam incansavelmente e até da pena, mas é quase impossível não deixarem vestígios, mesmo em uma casa vazia, mesmo em um cômodo pouco iluminado, afinal qual é a casa que não tem um mísero espelho que seja?




terça-feira, 4 de novembro de 2014

Era uma vez...



Compramos uma bicicleta para o Fabian pela internet. Vinha 95% montada, eles diziam. Pois chegou com os pedais para encaixar (facílimo), o banco para ajustar, o guidon e o freio por arrumar e uma frescurinha de ferro para atar na parte ao lado da roda traseira. Passei por várias fases: a "bricoleur" entusiasmada, a mãe perdida, a adolescente irritada com a porcaria do manual que não diz como montar, a monja que meditava para não arrancar os cabelos, a louca que quase mastigou os parafusos de raiva, a política que sai para procurar alguém que faça o trabalho por si. A história teria um final feliz caso o cara que conserta bicicletas não quisesse 50 euros por fazer o que ele faria com um pé nas costas em dez minutos. Além dos cinquentinha, só vai deixar pronta amanhã. Resignada, anuí em pegar a bicicleta a partir das nove e meia da manhã. Podia ao menos sorrir né? Mas não, o cachorro labrador preto  era muito mais cordial que o dono, me recebeu com o rabo abanando e me deu tchau lambendo minhas mãos. Quando a gente é assaltado assim, faz bem uma atenção destas!



Dá para ver pelas fotos que o senhor recebeu tudo quase de mão beijada. Aff...





Um dia de outono

De repente estava parada em frente à porta da escola do Fabian, levemente encostada no corrimão da ponte que nos leva até ela. Mulheres se aglomeravam a minha volta, falando, falando e falando. Por alguns instantes deixei correr solta minha cusquice habitual, falavam de carros mal estacionados e no quanto isto as enervava. Foi em um clique imperceptível, quando vi, já não estava mais lá. Uma gralha sobrevoou o céu cinzento e como em um feitiço qualquer, todas aquelas vozes transformaram-se em seu lamúrio animal. Crá crá crá. Retumbavam em minha cabeça. Crá crá crá. 
Às vezes a solidão prega-me peças destas, em um minuto estou aqui e no seguinte já estou voando longe. Racionalizei que era-me muito fácil ignorar uma língua ainda estrangeira, uma língua que me diz pouco, quase nada. Chuto-a para o canto assim que ponho os pés dentro de casa. Não quero ver nem tampouco ouvir falar nela. E qual criança birrenta lembro-me do meu desespero quando me tornei emigrante pela primeira vez.  Foi um parto difícil, sentia-me recém arrancada de todo o conforto que conhecia, senti-me lançada a uma luz fria, um terreno hostil. Pronta e nua, a vida disse depois de me parir: fiz a minha parte, agora estás por ti. Não era verdade que estivera só, mas ao mesmo tempo era. Há caminhos que só a solidão pode fazer sentido. Por muito tempo ouvir o português de Portugal me machucava, feria meus ouvidos como se tivesse em uma cela escura a ouvir intermitantemente o mesmo ruído de uma gota a pender rumo ao chão. Hoje não sinto mais esta gana de saber por toda a parte um idioma (ou sotaque) que não é meu, chamando-me à razão de que não pertenço aqui. Ao invés da raiva há o abandono, braços pendidos, pensamentos soltos em espiral. 
Não sei se é do tempo...inverno e outono são para mim as estações mais deprimentes que existem. O céu em armadura opaca proibe o sol de aparecer, mantém-no prisioneiro semanas a fio. E mantém-nos igualmente em estado letárgico, enquanto nossas folhas desabam uma a uma até nada mais restar...