terça-feira, 20 de outubro de 2015

Saint Raphaël

Nove meses dormindo e acordando com as gaivotas, sendo visitada por uma pomba que vem, pousa no parapeito da sacada e me olha nos olhos por cinco minutos e depois vai embora. Nove meses sentindo o velho cheiro da maresia pelas ruas estreitas, vendo o sol se levantar dia após dia como aqueles funcionários certinhos que não se atrasam nunca. E apesar disto tudo, Saint Raphaël não é um lugar perfeito porque não há um shopping a menos de 60 quilômetros e não há grande coisa para fazer a não ser passear pelo parque Bonaparte e ver o mar. Perambular pelo deck e ouvir o sino da igreja logo ao virar da quadra ou os gritos das crianças em uma das únicas pracinhas da cidade. 
Não é o paraíso porque às vezes dá saudade de outros lugares, de outros sabores, de outras gentes. Mas eu que sempre estive bem onde não estava, tenho aprendido a estar bem aqui. Na maior parte das vezes, enquanto olho para todos os morros que tentam engolir o sol na sua despedida, sou feliz...






sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Boxe

Depois de muito dar de cabeça na parede (em sentido figurado) aprendi que para bater não é preciso raiva, mas técnica. A raiva é um bom começo, mas tem o inconveniente de nos deixar marcas. Lembro das primeiras vezes que cheguei com os nós dos dedos estourados, um derrame em um pé e ambas as canelas salpicadas dos mais variados tamanhos de roxo como um dálmata. Ao me ver no chuveiro gemendo quando a água me encostava, o marido disse: assim não pode ser, não é possível vir deste jeito todas as aulas. Eu sei...mas não resisti. Não resisti em colocar para fora toda raiva numa sessão só. Olhava para o saco rangendo as correntes e pensava...nem sei no que pensava. Eu não sabia por onde começar. Que tal nos dois socos murchos que dei em um menino que me bateu enquanto meu avô o segurava? Esmoreci, aquilo não me deu raiva, mas comiseração, e esta era a última coisa que procurava naquele momento. 
Depois pensei nas vozes que me invadem para dizer que não consigo, que sou um fracasso. Que não tenho força para tal. Pá e pá. O barulho seco seguido de um apertão no abdômen marcava o ritmo e a raiva era a personagem principal. Não bater em ninguém era a minha premissa (não apanhar também), e este foi um dos motivos por ter preterido  a escola de boxe ao lado do meu prédio. Acompanhei algumas aulas da janela do quarto e decidi que o que eu queria mesmo era aprender a bater no saco apenas. O que também não foi fácil. Não é fácil se despir de toda a programação de como-ser-uma-boa-menina e de repente revidar com força e com vontade aquele objeto inofensivo balançando languidamente. Sei lá se alguém já sentiu isto, mas no começo eu senti dó de bater no saco. Embora eu soubesse que era mais provável eu sair machucada daquele encontro, minha timidez me forçou a dar os primeiros socos quase como pedindo licença e desculpas, para depois entregar-me ao descontrole total. Sou dessas, oito ou oitenta, exagerada, como diria Cazuza, até nas coisas mais banais para mim é tudo ou nunca mais. 
Mas tem uma hora que nos deixamos ir em cada gota de suor que foge pela cara: há um vazio no meio da raiva. Não é possível sentir raiva por tanto tempo, ou melhor, expressá-la, porque a raiva que soltei fedia a mofo e tinha buracos de traça. Há um momento em que não nos resta mais nada, só as batidas de um coração descompassado, só a repiração difícil de quem foi consumido por alguma doença grave e dá os seus últimos suspiros. E depois de sentir-me sem forças, vazia de mim, a mente como uma peneira que deixa os pensamentos esvaírem antes que sejam registrados, vou embora e prometo voltar na próxima aula. O boxe é talvez o único exercício que faço sem pensar em quantas calorias vou gastar.

Precisamos falar sobre Kevin

"Portanto, meu receio não era apenas de virar minha mãe, eu temia ser mãe. Tinha medo de me tornar aquela âncora segura e estacionária que fornece a plataforma para a decolagem de mais um jovem aventureiro, cujas viagens eu talvez inveje e cujo futuro ainda não tem amarras nem mapas. Tinha medo de virar aquela figura arquetípica na soleira da porta — desmazelada, meio gorda — que acena adeuses e manda beijos enquanto uma mochila é posta no porta-malas; que enxuga os olhos com o babado do avental sob a fumaça do cano de escape; que se vira, desolada, passa o trinco na porta e vai lavar os poucos pratos que restaram na pia, sob um silêncio que pesa sobre a cozinha como um teto caído. Mais do que partir, eu tinha pavor de ser deixada."

"Franklin, eu tinha verdadeiro pavor de ter um filho. Antes de engravidar, minha visão do que significava criar uma criança — ler histórias sobre trens e casinhas com um sorriso no rosto, na hora de dormir, enfiar papinha em bocas escancaradas — parecia ser a de uma outra pessoa. Eu morria de medo de um confronto com o que poderia vir a ser uma natureza fechada, pétrea, de um confronto com meu próprio egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o “virar da página”, sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia. E creio que foi esse terror que talvez tenha me atraído, da mesma forma como um parapeito nos tenta a dar o salto."

"Qualquer que seja o gatilho, o chamado não penetrou meu sistema e isso me deixou com a sensação de que havia sido enganada. Quando percebi, aos trinta e poucos anos, que ainda não entrara no cio materno, comecei a me preocupar com a possibilidade de haver algo errado comigo, algo faltando."

"Afinal, agora que os filhos não aram mais nossas terras nem nos dão guarida quando ficamos incontinentes, não há motivo sensato para tê-los."

"(...) andei revirando meu sótão mental a ver se encontrava minhas ressalvas originais à maternidade. Lembro-me, sim, de que a montoeira de medos, todos do tipo errado. Caso eu tivesse enumerado as desvantagens da procriação, “filho pode acabar sendo assassino” jamais teria aparecido na lista. Na verdade, ela teria sido algo mais ou menos assim: 1. Pentelhação. 2. Menos tempo só para nós dois. (Que tal tempo nenhum só para nós dois?) 3. Os outros. (Reunião de Pais e Mestres. Professores de balé. Os amigos insuportáveis das crianças e seus insuportáveis pais.) 4. Virar uma vaca gorda. (Eu era esbelta e preferia ficar como estava. Minha cunhada teve varizes durante a gravidez, aquelas veias enormes nas pernas dela nunca mais desincharam e a perspectiva de ver minhas panturrilhas se ramificando em radículas azuis me torturava mais do que eu poderia admitir. De modo que não admiti nada. Sou vaidosa, ou já fui um dia, e uma de minhas vaidades era fingir que eu não tinha vaidade.) 5. Altruísmo artificial: ser forçada a tomar decisões segundo o que é melhor para uma outra pessoa. (Eu sou pavorosa.) 6. Redução nas minhas viagens. (Note que eu disse redução. Não fim delas.) 7. Tédio enlouquecedor. (Eu achava criança pequena uma chatice inominável. E, desde o princípio, sempre admiti isso para mim mesma.) 8. Vida social imprestável. (Nunca consegui ter uma conversa decente na presença de crianças de cinco anos na sala.) 9. Rebaixamento social. (Eu era uma empresária respeitada. Assim que aparecesse com uma criança a tiracolo, todos os homens que eu conhecia — e todas as mulheres também, o que é deprimente — deixariam de me levar tão a sério.) 10. Arcar com as conseqüências. (Procriar é saldar uma dívida. Mas quem quer saldar uma dívida da qual se pode escapar? Tudo indica que as mulheres sem filhos escapam impune e furtivamente. Além do mais, de que adianta pagar uma dívida para o credor errado? Só a mais desalmada das mães poderia se sentir recompensada da trabalheira ao ver a própria filha levando finalmente uma vida tão horrenda quanto a sua.)"

" Sentia-me dispensável, jogada fora, engolida por um grande projeto biológico que não iniciei nem escolhi, que me produziu mas que também iria me mastigar e depois cuspir fora. Eu me senti usada."

"Eu esperava que, com o tempo, a ambivalência sumisse, mas a sensação conflitante foi 
se acentuando e, desse modo, ficando mais secreta. Finalmente vou abrir o jogo. Acho que a 
ambivalência não desapareceu porque não era o que parecia ser. Não é verdade que eu me 
sentisse “ambivalente” a respeito da maternidade. Você queria ter um filho. Eu não. Tudo 
somado, até parecia uma ambivalência, mas, mesmo formando um casal que era realmente 
o máximo, não éramos uma mesma pessoa. Nunca consegui que você gostasse de berinjela. "

"Já não tenho 
mais tanta certeza se me arrependi de nosso primeiro filho meses mesmo de ele nascer. É 
difícil, para mim, reconstruir aquele período sem contaminar as lembranças com o 
tremendo desapontamento dos anos posteriores, um desapontamento que escapa às 
restrições do tempo e extravasa para o período em que Kevin ainda não existia para que eu 
desejasse o contrário."

"No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso 
filho com minhas próprias limitações — não só com o sofrimento, mas também com a 
derrota."

"A questão é que não previ o que exatamente iria acontecer comigo quando Kevin foi 
içado pela primeira vez até meu peito. Eu não havia previsto nada exatamente. Eu queria o 
que não podia imaginar. Queria ser transformada; queria ser transportada. Queria que uma 
porta se abrisse e toda uma nova vista que eu não sabia existir ali fora se esparramasse 
diante de meus olhos. Eu queria no mínimo uma revelação, e revelações, por sua própria 
natureza, não podem ser antecipadas; elas prometem aquilo que ainda não se conhece. 
Mas, se houve uma lição a ser tirada do meu décimo aniversário, foi a de que as 
expectativas são perigosas quando são ao mesmo tempo grandes e amorfas. "


"E continuei esperando. Mas todo mundo diz..., pensei eu. E aí, muito 
distintamente: Cuidado com o que “todo mundo diz”. "

"Quanto mais eu tentava, mais consciente ficava de que o esforço era abominável. Aquela 
ternura toda que, no fim, eu simplesmente imitava, não deveria ter chegado sem ser 
convidada? Portanto não era só Kevin que me deprimia, nem o fato de você estar 
começando a me negar afeto, Franklin; a verdade é que eu me deprimia. Eu era culpada de 
mau procedimento emocional"

A cera

Fabian deita sobre os meus joelhos depois de muitas ameaças. Tinha o ouvido esquerdo completamente tapado por uma bola de cera. Xinguei o médico em pensamento mais uma vez; ninguém me tira da cabeça que o fez de propósito ao tirar de um só ouvido para voltarmos novamente e claro, pagarmos outra consulta de 50 euros. Deve ser bom ganhar 50 euros em menos de dez minutos, enfim. Tinha a orelha na mão e a lanterna na outra. "Mãe, eu quero veeer". Ora, ninguém consegue enxergar a própria orelha, meu filho.  Mas está bem, eu tiro uma foto. Pensando nisto, foi bom ter apagado depois, agora que o meu telefone foi para o conserto. Sabe-se là o que iam achar de uma foto desfocada de um buraco preto...
Pego o remédio em uma tentativa de diluir a cera. Grito para o marido trazer algodão, mas chego à tempo de impedir o Fabian parado em frente ao armário da cozinha. Estava à procura do pote de algodão doce para por nas orelhas. Eu não sei o que faria ao ver dois chumaços cor-de-rosa lhe escapando das ditas, mas a minha sorte é que puxou ao pai: só acha alguma coisa quando esta se joga ao seu colo. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Maratona

No meu caso só se for de novela ou série. Eu sei que to sempre atrasada, mas só agora terminei de ver o último capítulo de Verdades Secretas. Foi uma semana devorando episódio atrás de episódio. Tenho algumas considerações a fazer: Gianecchini que que é isso meu Deus! Antes eu achava ele gato, mas agora que tá ficando mais velho, grisalho e tals, tá ficando do jeitinho que eu gosto. Ui abafa, abafa. Ameeeei o Visky, adorei a música dele também. Depois da gente estar acostumado com as novelas top brasileiras, não tem como ver de outros países...é porque não dá nem para comparar. Esta e a Avenida Brasil ficaram para a história, muito, muito boas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Voltei

 Segundo dia naquela sala, poucos colegas e todos à volta dos setenta anos. "É um clube de aposentados", falou a professora com um sorriso meio borrado. Sim, foi para aqui que a Mairie me enviou quando perguntei sobre um curso de francês para estrangeiros. O curso se chamava "Auxilio à leitura em francês" e estava entre os de tricot, bordado e pintura. 
Somos em cinco: dois ingleses (Gavin e Jane), uma colombiana (Leonor) e um sueco (Boo ou seja lá como se escreve). Muito simpáticos e cheios de histórias. Por exemplo, ficamos sabendo do romance de verão de Boo com uma mulher casada e da sua preocupação em manter os níveis de testosterona. Hoje falamos sobre AVC, sobre a cirurgia no olho de Gavin por conta da pressão alta. Enfim, sinto-me como estivesse falando com os meus padrinhos, em casa, portanto. E feliz.
Jane quis saber porque deixei o Brasil e eu imagino que tenha passado a semana esperando para ouvir a resposta, já que ao final da primeira aula disse que não me achava deslocada, pois convivo com meu marido que tem 60 anos. 
A boa noticia é que apesar do Fernando estar constantemente me puxando as orelhas, quando digo que estou aqui fez dois anos em setembro, eles ficam admirados porque falo muito bem. Cof cof. Nem tanto, ainda tenho uma conjugação verbal terrível e às vezes escorrego o pé no inglês. De qualquer forma, para quem teve sempre dificuldade em línguas, acho que estou indo bem. Podia estar melhor, podia, mas agora com objetivos e aulas novamente, sinto-me mais estimulada a praticar. E hoje adquiri meu primeiro livro em francês: Nouvelles à Chute. Segundo a professora, pequenas histórias com final surpreendente  (como foi a minha vida ao deixar o Brasil). Quem diria, euzinha? 

Sobre o outro blog

A quem me enviou email, aquele blog eu fechei há muito tempo, desculpa!