segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 4


O Sorriso do Palhaço



Quando voltaram do parque chovia como nunca. Chegou até a esfriar. Alina virou-se para o irmão preocupada, pois não estavam fazendo o caminho de volta, viajavam ao contrário, para bem longe de casa.
- Para onde estamos indo? – perguntou-lhe tímida.
- Vamos para o circo. – respondeu seco – não era isso o que queria?
O ônibus não podia chacoalhar mais. Passavam por estradelas sinuosas de chão batido, curvas aonde o carro que viesse em sentido oposto tinha de encorcovar por cima das calçadas para dar lugar ao outro. Desceram no fim da linha e caminharam um tanto mato à dentro onde no fundo de um sítio se localizavam alguns trailers. Ela tentava em vão proteger-se com a camiseta, que também se encontrava encharcada. Ele parou no portão, bateu palmas e abriu-o. Dois cachorros vieram dos fundos, latindo alegremente. Alina pulou no colo dele, que avisou-lhe que tudo o que queriam era cheirá-la. Junto com os cães viera o dono, um jovem magricela.
- E aí cara?! Quem é a vítima? – mirou-a com seus olhinhos crispando de satisfação e curiosidade.
- Minha irmã. – retesou a testa – quero que fique com ela, eu preciso arrumar umas coisas antes de fazer aquele negócio.
- O Vilson já te deu o sinal?
- Não, não é por isso, são outras coisas...assunto meu.
- Tudo bem. Claro que posso ficar com a belezinha...
Ele virou-se para Alina:
- Escute aqui: quero que se comporte e obedeça ao tio, tá? O mano precisa sair, mas eu volto...
- Você mentiu para mim...disse que ia me levar no circo... – falou chorosa – eu não quero ficar... – agarrou-se na bermuda do irmão.
- Alina por favor, você está bem crescidinha, tá fazendo até coisa de mulher...você vai ficar aqui e pronto. – virou-se para o amigo que os observava impaciente, protegendo-se com a aba do boné – Cuida dela.
Ele mirou-o longamente antes de ir. Fechou o portão deixando os cachorros e os choramingos de Alina. Ela talvez estivesse segura, mas por ora, não lhe ocorria lugar melhor para escondê-la.
- Pode deixar. – gritou o magricela quando ia já bem longe. E vendo Alina com o olhar parado na estrada por onde o irmão desaparecera há alguns minutos, pegou em sua mão e levou-a para dentro.
- Como é seu nome? – ela permanecia ausente – você fala?
- Alina. – respondeu depois de muito tempo.
- Que nome bonito! O meu é Pedro, pode me chamar de tio se quiser. – ela o fitava com olhos assustados, a boca apertada por entre dentes. – o seu irmão não mentiu quando disse que ia te trazer no circo. Isso aqui já foi um grande circo, mas agora é o que você vê...um monte de lata velha...só sobrou o palhaço, eu.
O magricela deixou escapar um pouco da tristeza que sentia cada vez que remexia no passado, contudo rapidamente se corrigiu, firmando a voz com falsa disposição: “um palhaço será sempre palhaço, ainda que o riso lhe falte”. Arreganhou o sorriso amarelado ao perceber que ela esboçava uma pergunta:
- Você era um palhaço? – pela primeira vez o encarou, Pedro viu que seus dentes não eram tão afiados quanto pensava.
- Sim, e fazia malabarismo também; e ainda engolia fogo!... – a empolgação da menina o contagiou até recobrar o bom senso, então a alegria foi se apagando à medida que murmurava – mas isso foi há muito tempo...
- Nossa! – um ingênuo sorriso lhe escapou dos lábios: quem resistiria aquele sorriso? Perguntou-se o rapaz enquanto reparava nas feições de criança no corpo da mocinha com quem falava.
- Eu acho que ainda sei fazer alguma coisa, quer ver?
- É claro que quero!
- Vamos então. As roupas estão no outro trailer, assim aproveita para se trocar também. Vem –ele segurou sua mão – antes que chova mais forte.
Na escuridão da “lata velha” como ele acostumou-se a chamá-la, Pedro apresentava-se para sua única espectadora. Esquecendo-se disso, imaginava a multidão que o cercara outrora na época dourada de sua vida artística. Com a morte do pai tudo mudou: o circo faliu, venderam os animais e cada um foi para seu lado. A esperança dispersara-se, e os trailers funcionavam como pequenas máquinas do tempo, cheias de fotos, fantasias, lembranças daquele gigante adormecido.
Pedro convidou-a para sentar. A cozinha não era grande, havia apenas um fogareiro, uma geladeirinha e uma mesa dobrável. O armário quase sempre vazio, que a todo o momento ele esquecia-se de abaixar a cabeça, batendo nele, sufocando um palavrão; tudo dava àquele lugar uma atmosfera de aconchego, da tranqüilidade que não tinha no morro, onde vivia.
- Eu não sei cozinhar direito, me desculpe. Já estou acostumado com a minha comida.
- Não se preocupe. Eu estou com fome.
Houve um silêncio cortado apenas pelo zumbido de uma varejeira. Os dois a observavam com os olhos.
- Quem foi que lhe fez mal, minha pequena?
Alina não respondeu, parou de comer e continuou a alisar pensativa a barriga que crescia.

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