segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 6


O acordo


- Este quarto não é o mesmo sem o espelho.
- O que houve com o espelho?
- Quebrou, filho, quebrou... – o jovem permanecia em pé olhando para a mão esquerda do homem à sua frente. Ela estava enrolada em uma atadura manchada de sangue enegrecido. Ele agia com cautela: “esse homem é louco...quebrou o espelho, desfigurou o próprio rosto...”
- Chegue mais perto, filho.
- Mas nós já não tínhamos tratado?... – estava com medo daquela voz rouca, mas demonstrá-lo seria o mesmo que assinar sua sentença de morte.
- Mas ainda não falamos de uma coisa...
- Acha que não estou apto para o serviço?
- Certamente que está.
- Não estou entendendo...aonde quer chegar?
- Você é bonito... – ele aproximava seu rosto da luz.
- Eu não...
- Psshhh... – silenciou-o – não reparou uma coisa em meus homens?
- N-não...o que...nãoooooo!!!
- Segurem-no rapazes.
O homem passou a mão machucada com delicadeza em suas bochechas, em seus olhos, em seus lábios. O jovem prendia a respiração a cada vez que saia da ferida o cheiro de sangue seco que tanto detestava, e fechava os olhos com receio de abri-los novamente. Ele aproximou-se o máximo possível e sussurrou-lhe:
- É que todos tem os lábios cortados! – disse isso e desferiu um violento e certeiro golpe. Depois ergueu a lâmina espelhada e tingida de sangue, revelando-a aos que assistiam à cena. – isso é para recordarmos de que o silêncio é sempre a melhor opção. Lembre-se de que somos uma família. Você é um dos nossos agora. Vai, pode ir.
Os capangas o soltaram de volta no chão. Ele saiu correndo, sem olhar para trás, apavorado com o sangue que escorria de maneira vertiginosa. Corria com dois dedos no corte e os outros na boca para estancar sua ânsia de vomitar. Pensou em ir para o hospital, mas era muito arriscado, decidiu por subir o morro, no terreiro de seu Afonso, ele cuidaria daquilo, pois suas ervas nunca decepcionaram.
Estava uma noite fresca e estrelada. A lua escondia-se por entre as nuvens que mais pareciam vestígios de fogos de artifício de tão tênue que era seu circular vaporoso pelo céu de ébano.
Eram oito e meia e podia-se ver o movimento de ir e vir dos moradores ou para o culto evangélico, ou para a umbanda e candomblé ou mesmo para o “Deus me acuda” de mais uma noite no desvio do crime.
Ele adentrou no terreiro calado. Não sem antes encarar a santa de rosto pintado de rubro, parada à porta, que tanto o assustara na infância. Assim ficou durante quase toda a cerimônia, os olhos baixos com nojo daquela gente que girava como lençóis de pontas sujas pela lama: assim eram os pés negros dançando ensandecidos ao ritmo de tambores. Josué tinha ainda os olhos baixos quando seu Afonso sentou-se ao seu lado. Ao ouvir que o banco de madeira descascado e repintado rangera, o rapaz buscou incansavelmente os olhos do velho. Tremia e suava de febre; sentia frio e medo, muito medo. No fundo desconfiava que nem mesmo ele pudesse ajudá-lo. Desejava que sua voz grave como devia ser a voz de sua consciência muda o estremecesse como aconteceu naquele instante:
- Que tu tá fazendo aqui fio?
- Eu estou precisando de ajuda...
- Ôcês só vem quando percisa... – falou sacudindo a cabeça branca como a entender a desobediência dos jovens. – mas duma coisa vô ti avisá, fio: si veio aqui pra pidi remédio pro corpo o pai José tem, mas pra alma...essa só a cossciência limpa podi curá...
- Eu estou com muito medo...
- Nóis não podi interfiri em nada. O fio já escoieiu o camino dele e não podi mais vortá atrais.
- Me ajuda pai José... – falou baixo prestes a chorar.
- Toma, isso aqui vai resorvê – falou ignorando seu arrependimento. O velho puxou alguns ramos de folha da camisa surrada e deu-lhe – é pra passá antes de deitá.
- Não vou conseguir dormir...
- Fio – o preto mirou-o nos olhos firmemente com suas órbitas amareladas e repletas de vazinhos ( Josué daria tudo para se perder naquelas ruelas e esquecer o que o trouxera até ali); depois tocou a ferida, analisando-a e, parecendo ver o que ninguém percebia, fez com que parasse de sangrar. – isso aqui os home do cosa ruim botaram em ti. Isso qui não se apaga...só cá morte. Ôcê tem medo di morrê, fio?
- Eu não sei...
- Pensa na minina. Tira ela do caminho do cosa ruim. Tu deve de sabê porque tô ti dizendo, tu não é burro, causa di que tu imbarrigô ela i ninguém disconfiô.
- Ela tá bem?
- Nóis tá mió cá nossa sombra que se tivesse com quem nóis ama.
Pai José retirou-se para atender as pessoas que o aguardavam e deixou-o largado as próprias dúvidas, como um menino analisando a profundidade de um lago turvo. Nada mais disse a Josué, que sem forças, observou sua corcunda desaparecer na multidão branca sacudindo-se no terreiro de chão batido. Foi embora triste, a cabeça cheia de sons acusatórios. Sentiu que a santa o encarava pelas costas, em sua casinha vermelha, envolta em velas e flores. Tinha medo e raiva daquele sorriso. Sorriso cínico. Mas era só uma imagem...e imagens nada podem fazer. Pior eram os seus “filhos” que andavam por aí. E era talvez disso que ela ria...

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