Alina e o bebê
Amanheceu um dia lindo, a carícia de uma brisa brincava, balançando as copas das árvores, que por sua vez, acordavam os ninhos de joão-de-barro e as lagartas preguiçosas em seu arrastar costumeiro. Como a natureza era maravilhosa! Como suas leis eram belas e perfeitas, não esquecendo nenhum ser vivo em suas mãos ditosas! Alina aprendera que Deus fizera a natureza e que também fizera o homem, seu irmão, para zelar pela sua manutenção. Mas o irmão era relapso, egoísta e acomodado: queria somente o que ela lhe oferecia sem nada dar em troca...
Porque Deus não fizera o homem como a natureza, belo e perfeito? “Porque Deus lhe dera o livre-arbítrio, a oportunidade de livre escolha”, elucidava a vó Pedra, sua vizinha. Tinha mania de falar difícil, uma linguagem de livros, talvez dos livros que ela tirava essas coisas tão curiosas...e Alina seguia com suas perguntas: “e porque o homem sempre escolhe o mal?” “nem todos escolhem o mal, e minha filha, talvez seja porque este lhes pareça o caminho mais fácil, mais agradável às coisas passageiras....mas nem todos se iludem, nem todos”...Retrucava a senhora, plena de convicção. Alina ficava quieta, guardando para si as dúvidas sem respostas satisfeitas e inventando para elas as que lhe parecessem mais aceitáveis. Pensava: “são as pessoas que não conseguem viver em paz, no fundo, ninguém quer ficar em paz...”.Enquanto vó Pedra a afastava do corpo de uma mulher que sucumbira a uma bala perdida. A poucos metros, atravessava um moleque de costelas translúcidas com a sacola de compras que a morta deixara.
O rapaz magricela interrompeu seu divagar:
- Teve uma boa noite?
- Sim...eu estava aqui pensando numa coisa...
- Diga, minha flor.
- É que... – Alina passava uma flor de ipê roxa pelas canelas e pés, uma flor que juntara do chão. – é que você acha que vai doer? – falou com a cabeça baixa, constrangida.
- Doer o que?
- Você sabe, o bebê.
- Eu não sei...não sei, sinceramente... – Pedro tinha em mente a cena de um filme, só lembrava de que tivera que baixar muito o volume, a atriz se esganiçava na tela muda, as pernas incrivelmente abertas: humilhação e dor.
- E depois que ele nascer, você acha que o Josué vai dar atenção só pra ele? – Nesse momento ela virou-se e encarou-o com os olhos cinzentos rasos d’água. O rapaz ficou por alguns minutos assobiando e afagando seus cabelos louros, até perceber que ela chorava de mansinho.
- Não criança. Não, o Josué não vai deixar de gostar de você só por causa dele. – olhou para seu ventre sorrindo e continuou a assobiar. – bem, acho que estou com fome: vou fazer um café para nós três.
Alina levantou-se sacudindo as folhas grudadas em seu vestido e se pôs a caminhar pelo sítio. Pedro a observava da janela do trailler, enquanto passava manteiga no pão. Sentia pena dela...sentia vontade de poder amenizar um pouco seu sofrimento que parecia-lhe adulto demais para aquele corpo. Mas a vida era assim mesmo...Ficou imaginando-a com um neném nos braços e já não tinha tanta certeza sobre o que dissera algum tempo atrás...Talvez Josué perdesse sua consideração de irmão mais velho e responsável por ela (“o crime fazia, como os santos, milagres”), e talvez também nem sequer voltasse.
A mocinha entrou faceira quando ele a chamou.
- Que felicidade toda é essa?
- Eu estava escolhendo o nome pro bebê...que você acha de Carina se for menina e Fabrício se for menino?
- São bonitos... – disse-lhe aliviado pela sua alegria.
- Não, melhor: se for menino, vou chamar ele de Pedro! – seu entusiasmo parecia indicar a descoberta do nome certo para uma boneca nova.
- Você gosta do meu nome?
- Gosto de ti. – mordeu o sanduíche e brilharam-lhe os olhos melífluos. Pedro riu também, sem coragem para refletir sobre o que ela dissera.
À noite em sua cama estreita e desconfortável, matutava sobre o que faria caso o amigo não viesse. Pensou, pensou e acabou por dormir cansado, sem achar solução.
Pedro acordou assustado com os gritos de Alina. Todo suado, levantou-se o mais rápido que pôde para acudi-la, ainda meio sonolento e sem entender o que acontecia...Achegou-se no sofá onde ela dormia, e deu com seus lençóis ensangüentados e Alina chorando desesperada: era triste a cena da menina agarrada em sua boneca, tremendo de dor e medo pelo ser que esperneava em suas entranhas. Ela agarrara-se nele, em sua camiseta de física empapada e seus dedinhos comprimiram os ombros de Pedro, enquanto ela toda se sacudia em soluços de pavor. Ele tinha que pensar depressa, na hora, não lhe ocorreu de pegar uma bacia com água fervente, nem panos, nem nada. Só lembrou-se (como no filme) de deitá-la e abrir-lhe as pernas à força, a medida em que gritava para respirar fundo e empurrar...empurrar...empurrar...
Alina não conseguia. Fraquejava, tinha náuseas e febre...As lágrimas lhe caíam viscosas pelo rosto vermelho e molestado pelos cabelos desgrenhados. Pedro exasperava-se: via já a cabeça da criança que sufocava, presa, sem entrar novamente, nem sair para a vida que se fazia mais distante do que os centímetros que faltavam.
O rapaz pegou a tesoura de jardineiro que encontrara em cima da pia para lavar, ainda suja da terra, e assim mesmo, cortou o cordão umbilical. Não pode descrever o que sentia...o que sentiu ao pegar aquela coisinha minúscula, de mãozinhas delicadas, de crânio mole, mole. Não dera um vagido: os lábios de um natimorto eram o retrato da desistência, eram o cru sentimento da desistência, misturado com uma certa descrença nas leis naturais, tão vã fora sua preparação no corpo materno. E ele o pegou ainda quente do útero, saiu correndo antes que Alina estranhasse a ausência de seus gritos de protesto pela claridade e frio, com o cuidado de quem acreditava na possibilidade de uma ressurreição. Cavou uma cova rasa, evitando olhar para seu sexo. Natimortos não tem sexo: de que adiantaria pensar em nomes, em planos, se a morte os atropelou relembrando ao homem o seu grácil lugar no mundo? Depositou a terra sobre seu corpo, a princípio com medo de feri-lo, tornou-se aos poucos, impaciente com sua pieguice. Mas ao cobrir o rostinho de feições miniaturais, sentiu uma irreprimível vontade de urrar, e o fez com tanta dor e agonia que os cachorros o cheiraram e puseram-se a uivar também como doidos. Pedro acordou do pesadelo com lágrimas nos olhos e o travesseiro úmido, espiou Alina que ressonava e foi à cozinha beber água: tinha a boca seca como se tivesse gritado a noite toda.
Amanheceu um dia lindo, a carícia de uma brisa brincava, balançando as copas das árvores, que por sua vez, acordavam os ninhos de joão-de-barro e as lagartas preguiçosas em seu arrastar costumeiro. Como a natureza era maravilhosa! Como suas leis eram belas e perfeitas, não esquecendo nenhum ser vivo em suas mãos ditosas! Alina aprendera que Deus fizera a natureza e que também fizera o homem, seu irmão, para zelar pela sua manutenção. Mas o irmão era relapso, egoísta e acomodado: queria somente o que ela lhe oferecia sem nada dar em troca...
Porque Deus não fizera o homem como a natureza, belo e perfeito? “Porque Deus lhe dera o livre-arbítrio, a oportunidade de livre escolha”, elucidava a vó Pedra, sua vizinha. Tinha mania de falar difícil, uma linguagem de livros, talvez dos livros que ela tirava essas coisas tão curiosas...e Alina seguia com suas perguntas: “e porque o homem sempre escolhe o mal?” “nem todos escolhem o mal, e minha filha, talvez seja porque este lhes pareça o caminho mais fácil, mais agradável às coisas passageiras....mas nem todos se iludem, nem todos”...Retrucava a senhora, plena de convicção. Alina ficava quieta, guardando para si as dúvidas sem respostas satisfeitas e inventando para elas as que lhe parecessem mais aceitáveis. Pensava: “são as pessoas que não conseguem viver em paz, no fundo, ninguém quer ficar em paz...”.Enquanto vó Pedra a afastava do corpo de uma mulher que sucumbira a uma bala perdida. A poucos metros, atravessava um moleque de costelas translúcidas com a sacola de compras que a morta deixara.
O rapaz magricela interrompeu seu divagar:
- Teve uma boa noite?
- Sim...eu estava aqui pensando numa coisa...
- Diga, minha flor.
- É que... – Alina passava uma flor de ipê roxa pelas canelas e pés, uma flor que juntara do chão. – é que você acha que vai doer? – falou com a cabeça baixa, constrangida.
- Doer o que?
- Você sabe, o bebê.
- Eu não sei...não sei, sinceramente... – Pedro tinha em mente a cena de um filme, só lembrava de que tivera que baixar muito o volume, a atriz se esganiçava na tela muda, as pernas incrivelmente abertas: humilhação e dor.
- E depois que ele nascer, você acha que o Josué vai dar atenção só pra ele? – Nesse momento ela virou-se e encarou-o com os olhos cinzentos rasos d’água. O rapaz ficou por alguns minutos assobiando e afagando seus cabelos louros, até perceber que ela chorava de mansinho.
- Não criança. Não, o Josué não vai deixar de gostar de você só por causa dele. – olhou para seu ventre sorrindo e continuou a assobiar. – bem, acho que estou com fome: vou fazer um café para nós três.
Alina levantou-se sacudindo as folhas grudadas em seu vestido e se pôs a caminhar pelo sítio. Pedro a observava da janela do trailler, enquanto passava manteiga no pão. Sentia pena dela...sentia vontade de poder amenizar um pouco seu sofrimento que parecia-lhe adulto demais para aquele corpo. Mas a vida era assim mesmo...Ficou imaginando-a com um neném nos braços e já não tinha tanta certeza sobre o que dissera algum tempo atrás...Talvez Josué perdesse sua consideração de irmão mais velho e responsável por ela (“o crime fazia, como os santos, milagres”), e talvez também nem sequer voltasse.
A mocinha entrou faceira quando ele a chamou.
- Que felicidade toda é essa?
- Eu estava escolhendo o nome pro bebê...que você acha de Carina se for menina e Fabrício se for menino?
- São bonitos... – disse-lhe aliviado pela sua alegria.
- Não, melhor: se for menino, vou chamar ele de Pedro! – seu entusiasmo parecia indicar a descoberta do nome certo para uma boneca nova.
- Você gosta do meu nome?
- Gosto de ti. – mordeu o sanduíche e brilharam-lhe os olhos melífluos. Pedro riu também, sem coragem para refletir sobre o que ela dissera.
À noite em sua cama estreita e desconfortável, matutava sobre o que faria caso o amigo não viesse. Pensou, pensou e acabou por dormir cansado, sem achar solução.
Pedro acordou assustado com os gritos de Alina. Todo suado, levantou-se o mais rápido que pôde para acudi-la, ainda meio sonolento e sem entender o que acontecia...Achegou-se no sofá onde ela dormia, e deu com seus lençóis ensangüentados e Alina chorando desesperada: era triste a cena da menina agarrada em sua boneca, tremendo de dor e medo pelo ser que esperneava em suas entranhas. Ela agarrara-se nele, em sua camiseta de física empapada e seus dedinhos comprimiram os ombros de Pedro, enquanto ela toda se sacudia em soluços de pavor. Ele tinha que pensar depressa, na hora, não lhe ocorreu de pegar uma bacia com água fervente, nem panos, nem nada. Só lembrou-se (como no filme) de deitá-la e abrir-lhe as pernas à força, a medida em que gritava para respirar fundo e empurrar...empurrar...empurrar...
Alina não conseguia. Fraquejava, tinha náuseas e febre...As lágrimas lhe caíam viscosas pelo rosto vermelho e molestado pelos cabelos desgrenhados. Pedro exasperava-se: via já a cabeça da criança que sufocava, presa, sem entrar novamente, nem sair para a vida que se fazia mais distante do que os centímetros que faltavam.
O rapaz pegou a tesoura de jardineiro que encontrara em cima da pia para lavar, ainda suja da terra, e assim mesmo, cortou o cordão umbilical. Não pode descrever o que sentia...o que sentiu ao pegar aquela coisinha minúscula, de mãozinhas delicadas, de crânio mole, mole. Não dera um vagido: os lábios de um natimorto eram o retrato da desistência, eram o cru sentimento da desistência, misturado com uma certa descrença nas leis naturais, tão vã fora sua preparação no corpo materno. E ele o pegou ainda quente do útero, saiu correndo antes que Alina estranhasse a ausência de seus gritos de protesto pela claridade e frio, com o cuidado de quem acreditava na possibilidade de uma ressurreição. Cavou uma cova rasa, evitando olhar para seu sexo. Natimortos não tem sexo: de que adiantaria pensar em nomes, em planos, se a morte os atropelou relembrando ao homem o seu grácil lugar no mundo? Depositou a terra sobre seu corpo, a princípio com medo de feri-lo, tornou-se aos poucos, impaciente com sua pieguice. Mas ao cobrir o rostinho de feições miniaturais, sentiu uma irreprimível vontade de urrar, e o fez com tanta dor e agonia que os cachorros o cheiraram e puseram-se a uivar também como doidos. Pedro acordou do pesadelo com lágrimas nos olhos e o travesseiro úmido, espiou Alina que ressonava e foi à cozinha beber água: tinha a boca seca como se tivesse gritado a noite toda.
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