segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 8




Ônibus da meia-noite

Estava friozinho, as nuvens não se distinguiam do céu brumoso, movimentavam-se pesadas, assim como um caramujo arrastando-se no asfalto depois de um dia quente. O ar parecia mais leve, o barulho dos carros menos irritante e as árvores agradeciam aos transeuntes, ofertando suas flores e as que não as possuíam, deixavam cair as folhas mais belas, como se acreditassem que eles fossem os responsáveis por entardecer tão fresco.
Fazia tempo que os dias terrivelmente quentes predominavam naquele estado. Previa-se chuva para outros lugares, frio e às vezes até mesmo neve, mas ali continuava tudo igual: um quadro pintado por um artista insensato. E as pessoas que atravessavam as ruas esburacadas e repletas de remendos, os cachorros vira-latas que enfrentavam o trânsito, o motorista que os xingava e as crianças que jogavam bola no campinho, eram personagens a se movimentar no espaço daquela tela infinita.
Mas parecia que ia chover...que alegria! Os meninos sequer interromperam a brincadeira, as moças se escondiam em suas pastas e as velhas de pernas cambotas, tentavam correr com suas sacolas de feira inutilmente. Alguns paravam seu caminhar e quedavam-se a contemplar o chuvisco tímido molhando as calçadas sujas. Um homem já maduro, ria como criança, na chuva, mostrando os dentes cariados ao sentir a água gelada tocar em sua careca.
Josué observava de dentro da rodoviária, sentado no banco de um bar, tomando café e mordendo um pastel de carne pingando a óleo. Estava calmo, com os olhos absorvendo a paisagem urbana, rindo sozinho das pobres senhoras de cabelos longos e grisalhos. Deu vontade de gritar: “não foge irmã, essa chuva foi Jesus que te mandou! Ele voltará!”.
Havia perguntas que nunca fizera na escola: “de onde vem a chuva, professora?” De repente ficou sério, o machucado ardeu pelo retesar dos lábios: era muito grande para fazer essas perguntas ingênuas. Levantou-se dali e colocou nas costas a bagagem, tocou na cabeça de uma menina que tomava suco, quis machucá-la, mas com expressão seca, deu-lhe os últimos trocados que estavam em seu bolso. Não vira seu sorriso.
Ficou a ler com dificuldade as manchetes na banca de revista enquanto aguardava o ônibus. O relógio pendurado à parede estava parado, e ele tinha vergonha de pedir as horas ao dono da tabacaria. Via com certa agonia o homem consultá-lo a todo momento. Talvez sua esposa o estivesse esperando em casa e os filhos o abraçassem quando abrisse o portão. Josué daria qualquer coisa para saber que horas eram. Tentou se concentrar no ruído da chuva batendo no caletão. Era uma música tranqüilizante, viajou em sua dança ritmada pelo vento. Tinha os olhos cerrados quando alguém o tocou no rosto. Agarrou fino braço, sobressaltado, pensando estar sendo roubado, e olhou perplexo para a menina do bar a sua frente.
- O que você quer?
- Calma! Eu também to esperando o ônibus. – apontou com a cabeça para o box vinte e três.
- Você vai naquele?
- É, você também, né? – ele soltou-a.
- Desculpe, eu me assustei. Não faça mais isso.
- O que você fez aqui? – apontou para seus lábios.
- Nada. Um machucado besta. – rosnou contrariado.
- Quer um chiclé?
- Não.
- Porque me deu dinheiro?
- Achei que precisaria. E você, porque veio até esse banco?
- Tome, achei que precisaria. – disse rindo ao lhe devolver a carteira de identidade, amassada entre os trocados que lhe ofertara.
- É perigoso andar por aqui sozinha. Onde estão seus pais? (tomou com a avidez de um egoísta as notas e a carteira de suas mãos).
- Minha tia vai estar esperando quando eu chegar lá.
- Parece que já são meia noite – Josué bocejou ao ver o ônibus estacionar. . vamos, pega suas coisas.
- Só tenho essa mochila.
- Isso tá me cheirando a criança fugida.
- Não se preocupe, moço. Não sou mais criança, já tenho doze.
- É...com sua idade eu também não era. – disse-lhe colocando suas tralhas no bagageiro e entrando para procurar seu banco. – poltrona dezessete...dezessete...aqui.
- Vou sentar do seu lado, o ônibus da meia-noite nunca enche. Mas vou na janela! – e mais que ligeiro pulou para o seu lugar antes que Josué pudesse dizer qualquer coisa. Colocou a mochila cor-de-rosa sobre as pernas e sorriu-lhe satisfeita. Josué com o rosto amarelado pelas luzes irritantes de leitura, relutante, sentou-se pesadamente, desejando se livrar de sua inquieta companhia. Castigava a cadeira por sua brabeza, apertava-a, espremia-a contra suas costas. Não falou nada. Saíram da cidade, adentraram a BR e ele mudo, testa franzida. Via com o canto dos olhos ela fitá-lo incessante, buscando um momento de distração sua para iniciar a tagarelice. O pior era que não conseguia relaxar sentindo-se observado, se mexia, apertava as pálpebras, procurava esquecê-la. De repente ouviu:
- Meu nome é Virgínia e o seu?
Fingiu dormir. Fingiu que não escutava voz nenhuma, que não estava sobre a estrada, que não existia mais nada além da irmã se agarrando em suas pernas, implorando para que não a abandonasse naquele sítio. Seria melhor para ela que a deixasse. Pedro cuidaria bem dela, era um bom rapaz. Mas como era triste a sina dos homens: não sabem amar sem prender o que amam. E agora lembrava das flores roubadas de jardins alheios: antes que murchassem, eram atiradas em um lixo qualquer. Alina era assim? O que restara de suas pétalas vistosas poderia ser largado, banido de seu pensamento? Ou era a ela mesma que beneficiaria com a ausência de um irresponsável que não sabia diferenciar sexo de amor? Mas ele sabia que era tudo para Alina. E sabia que ela o perdoara e continuara a lhe corresponder as carícias, mesmo consciente de que o que faziam não era certo.
Desembarcou sonambúlico, tudo o que fazia se tornava parte de um sonho, a mala que escorregou do bagageiro para suas mãos, o ruído dos grilos, a mão da menina abanando, acompanhada de uma mulher que mais parecia dona de prostíbulo. Precisava ver a irmã, carregá-la para o destino de um incestuoso incorrigível (isso porque não se pode mudar o curso de um sentimento: são como oceanos que se encontram, as águas frias da razão vencidas pelas águas quentes do desejo).
Caminhou sendo seguido pelos sons da noite, a trilha de chão batido, o mato espesso cobrindo suas bordas, um que outro farfalhar, olhava somente a luz da lua que carregava em suas mãos: a lanterna lá de cima, estava com as pilhas fracas de Deus.

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