O Lobo já não era mais lobo na cama. Levantava tarde aos domingos, abria a geladeira para bebericar um resto de cerveja que tinha escapado na noite anterior, não se importava de fazer as necessidades de porta aberta e já não dividia o chuveiro e as preocupações. Não tinha fôlego para soprar sua preguiça para os ares, mas desaparecia tão logo a mulher franzia os olhos.Chapéuzinho por outro lado, não era mais aquela menininha inocente que ouvimos cantarolar carregando os docinhos da vovó. Os seios e os quadris cresceram, os lábios tornaram-se um verdadeiro morango suculento, a voz não era tão irritante, mas continuava miúda e sardenta. Não tivera filhos, apesar dos olhos grandes do Lobo pousarem nas crias numerosas das princesas Encantado. Achava-se muito nova para ser mãe e morria de medo de ficar flácida e gorda como elas.
Chapéuzinho acendeu o cigarro, como fazia depois do café. Todas as manhãs pegava o jornal da mão do Lobo e lia de cabo a rabo a coluna social. Mas nesse dia, os olhos cinzentos fulminaram num instante o Lobo:- Você não acredita quem vai se casar!- A fada-madrinha?!- Dã! Com quem ela se casaria?!- Não sei… - Disse o Lobo com a boca grande de bocejo – com o Gepeto talvez…- É a Cinderela!Por essa nem o Lobo esperava. Aquela distinta senhora ia deixar o seu príncipe? Por quem? Ninguém menos que um camponês. E lá estava um convite para todos comparecerem no seu palácio, com hora e data marcada para breve. Ps: as bruxas não iriam, por não saberem se conter ante um casal feliz.
Tam – ta- ta- ta- tim- tim pum –ta-ta –ta! Depois de um segundo e meio, o mordomo veio abrir a porta. Chapéuzinho apertou bem os olhos ante tanta vela. Nossa, a luz estava mesmo amarela. E lá estavam o perfil de todas as princesas devidamente acomodadas em uma mesa comprida. Enquanto as crianças corriam pela casa, derrubavam castiçais, enchiam os bolsos de doces e lambuzavam os uniformes dos criados. Tudo sob o olhar complacente das mães e indiferente dos pais. Ah, tão boa a educação deste século: “ Laissez faire, laissez passe, la nature se place elle même”!
Chapéuzinho notou que todos os lugares na mesa das princesas estavam ocupados. Ficou perplexa ao ser conduzida para a mesa dos dragões, anões e ursos, ah e acabou sentando ao lado de um barrigudo e de uma jovem tímida. A menina parecia perturbada, tinhas uns tiques com o olho, e não largava o saquinho de miolas de pão. O irmão pediu desculpas, mas não se atreveu a retirar-lhe o saco. Nossa, se arrependimento matasse! Odiava discriminação! Só porque se casara com o vilão da história…Podia processá-las, mas ao ver como tinham de se apertar naqueles vestidos e sorrir como se tivessem vestindo uma camisola de algodão, sentiu-se vingada.
Olhou para a mesa dos príncipes: meia dúzia de calvos e carecas, atirados em um copo de chopp conversavam sobre futebol, mulheres, futebol, mulheres nuas, futebol e cerveja. Tinham o rosto acabrunhado, solidário ao Encantado de Cinderela, ou agora ex. Mas sempre acharam que ela nunca iria se adaptar naquele castelo tão grande, ainda que se obrigara a permanecer nele por causa das crianças. Ficou decidido que o sr. Encantado viria todos os domingos vê-las e que ainda pagaria uma polpuda pensão alimentícia. - Pobre homem! – Lamentavam e encharcavam os bigodes.Chapéuzinho ignorou o seu lugar e aos poucos aproximou-se da mesa das princesas. Se tivesse as orelhas do Lobo!! Mas não precisou. Ouviu em alto e bom som os suspiros das mulheres. Já estavam cansadas de fingir: o para sempre era pesado aguentar! O para sempre do café monosilábico, do jornal amarrotado, das meias atiradas pela cozinha, das crianças mal criadas, e do amor… Haveria amor no feliz para sempre? Alguma vez houve? Seria o amor imprescindível para um feliz para sempre? Chapéuzinho não tivera um. Sim, e se casara com o Lobo. Mas estavam deprimidas, cansadas de tanta aparência de felicidade. Sentiram-se enganadas desde crianças quando repousavam com a névoa dos príncipes em seus respectivos cavalos brancos nos sonhos.Qual fora a experiência de amor que sentiram? Não lembravam. Tinha que ser assim. Afinal o amor não tinha que ser assim pensou Chapéuzinho. O amor se constrói a cada dia, o amor traz intimidade e não vem antes dela, o amor vem com paciência, com honestidade e faz com que os amantes aprendam a ceder. Porém não quis compartilhar sua opinião, visto que ela mesma andava com dificuldades em seu casamento. Apenas ouviu as queixas das princesas para depois se divertir contando ao marido.
O casório seguiu sem muitas interrupções, a fada-madrinha dera o seu consentimento e Cinderela beijou carinhosamente o noivo. Chapéuzinho e o Lobo essa hora estavam bem longe dali, na casa da vovózinha.- Lembra Lobo, quando a gente se conheceu?O lobo muito teso concordou. Pegou Chapéuzinho no colo e a levou para cama. Chapéuzinho não sabia se estava feliz, nem triste. Mas estranhamente ficou feliz com isso. Aquela mania de perfeição era que estragava as coisas. Queria que muitas crianças soubessem disso antes de se tornarem mulheres frustradas. Mas ela sabia que tudo isso fazia parte da vida. E que o feliz para sempre, não dava certo nem na fantasia.
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