Um anjo bateu à porta
Isaura havia chegado tarde do trabalho. Eram oito da noite. O morro sacudia-se em meio a barzinhos, danceterias onde a violência e a droga infestavam qual praga cruel os infelizes habitantes.
Romulo a estava esperando, bêbado. Na maloca mal mobiliada, mal cheirosa, chegava ela mais uma vez, pela última vez. O filho olhou-a desamparado, pegou um copo d’água e lhe virou as costas indo à direção de seu quarto, separado por um tênue lençol. Foi então que a discussão começou.
Romulo levantou-se da poltrona esburacada e jogou-a contra a mesa da cozinha. Isaura passou a mão nas costas e viu que sangrava. Tinha vontade de matá-lo, de ser forte e bater nele só para que soubesse o quão humilhada ela se sentia. Ele lhe dizia coisas que não queria escutar, mas que no fundo sabia ser verdade. No início fora uma mulher exemplar, cuidava da casa, trabalhava, não reclamava de passar horas na frente do fogão...passou tanto tempo, que sua pele já começava a absorver o cheiro rançoso do feijão enquanto cozinhava.
Ela era bonita, tão bonita que o traficante do morro um dia lhe pedira casamento, mas não aceitara com medo de ficar viúva antes que isso acontecesse. Talvez por isso Romulo tivesse tanto ciúmes, talvez também, porque fosse feio e baixo.
Isaura era morena, possuía um corpo bem feito, cabelos longos, porém sem corte há alguns meses, dentição perfeita. Os olhos, de tão negros, pareciam sumir a cada sorriso que dava, naquela formosura que não podia caber mais em corpo tão pequenino. Era muito invejada por suas vizinhas, cujos maridos dariam tudo por uma noite com ela. No entanto, só tinha tempo para o trabalho e olhos para seu marido. Limpava casas o dia inteiro, faxinava um edifício granfino aos sábados, era caprichosa, e não havia uma queixa com relação ao seu trabalho.
Romulo fora criado pela tia, nunca gostara de estudar e o máximo que conseguiu fora um emprego de auxiliar de pedreiro. Era preguiçoso, invocado, não admitia provocação, e desde o dia em que começaram a namorar, não tivera sossego. Cogitavam que Isaura encontrara nele um pai para o filho que gerara com algum homem casado. Os amigos o chamavam de “príncipe”, por sua imensa feiura, por ser o oposto do personagem de contos de fadas. Porém para quem desde de pequeno era chamado de “monstrinho” (diziam que a mãe morrera de susto ao pari-lo e que mesmo Deus o esquecera), príncipe até que não era tão ruim...
Isaura não agüentava mais tanta desconfiança, quando chegava o encontrava caído, fazendo sempre o mesmo discurso, com palavras tão fétidas quanto seu hálito, e de tanto incomodar, de tanto insistir, ela acabou cedendo.
Jean era um viúvo para quem ela fazia faxinas semanalmente. Era um escritor de romances, um quarentão bem conservado e muito educado como todo bom francês. Dizia não ter amigos, encerrar-se no escritório, na solidão da noite, para fazer suas traduções, das quais retirava seu sustento. Viera para o Brasil ainda na adolescência, quando seus pais se separaram e sua mãe resolvera traze-lo a fim de retirá-lo do convívio com o pai, extremamente possessivo com tudo em que houvesse posto as mãos. Isaura olhava hipnotizada para a tatuagem que Jean tinha no pulso esquerdo, já que era canhoto, com a inscrição de um nome: “Martin não-sei-do-quê”. Porém ele se desconcertava com sua curiosidade e tratava sempre de escondê-la com a pulseira do relógio. Casara-se, mas não tivera filhos, e pelo que conseguira deduzir dos poucos retratos abandonados na estante, a mulher era de saúde frágil, loura como ele, corpo sem curvas, aparência de quem o acordara muitas madrugadas com choros mal abafados, talvez pela intuição da morte próxima. Mas nada perguntou, deixava que seu silêncio falasse, que aquele apartamento sussurrasse as respostas que aos poucos se fizeram mais necessárias sem que pudesse perceber. Gostava de ouvir sua voz grave, límpida, ao contrário da de Romulo sempre pastosa e alterada pelo álcool. Vez por outra ele recitava algum poema que ela não entendia direito, mas ditos com aqueles olhos azuis tristonhos, faziam-na querer beijá-lo, aninhar em seu colo aquele menino arredio, que se esforçava para não deixar sua emoção desabar diante dela. Ficava a escutá-lo com os lábios semi-abertos, as mãos repousadas nas coxas, ora ajoelhada, enquanto trançava os cabelos para voltar a esfregar o chão, sem se dar conta do quanto era custoso para o homem segurar o ímpeto de agarrá-la.
Um dia ele lhe recitou um trecho de Werther. Seus olhos embaciados de lágrimas cruzaram com os seus, e o amor aconteceu no carpete, sem explicações, em meio a muitas celebridades literárias que a tudo assistiram silenciosas.
E depois dessas, vieram muitas outras, em vários lugares da casa. Romulo não a tocava mais, ficara impotente, resultado de anos de cigarro e cachaça. O filho nascera um pouco antes disso acontecer... Mas Isaura ficou grávida novamente e não tinha como esconder as suspeitas que o marido lhe apontava desde o início do casamento.
Isaura havia chegado tarde do trabalho. Eram oito da noite. O morro sacudia-se em meio a barzinhos, danceterias onde a violência e a droga infestavam qual praga cruel os infelizes habitantes.
Romulo a estava esperando, bêbado. Na maloca mal mobiliada, mal cheirosa, chegava ela mais uma vez, pela última vez. O filho olhou-a desamparado, pegou um copo d’água e lhe virou as costas indo à direção de seu quarto, separado por um tênue lençol. Foi então que a discussão começou.
Romulo levantou-se da poltrona esburacada e jogou-a contra a mesa da cozinha. Isaura passou a mão nas costas e viu que sangrava. Tinha vontade de matá-lo, de ser forte e bater nele só para que soubesse o quão humilhada ela se sentia. Ele lhe dizia coisas que não queria escutar, mas que no fundo sabia ser verdade. No início fora uma mulher exemplar, cuidava da casa, trabalhava, não reclamava de passar horas na frente do fogão...passou tanto tempo, que sua pele já começava a absorver o cheiro rançoso do feijão enquanto cozinhava.
Ela era bonita, tão bonita que o traficante do morro um dia lhe pedira casamento, mas não aceitara com medo de ficar viúva antes que isso acontecesse. Talvez por isso Romulo tivesse tanto ciúmes, talvez também, porque fosse feio e baixo.
Isaura era morena, possuía um corpo bem feito, cabelos longos, porém sem corte há alguns meses, dentição perfeita. Os olhos, de tão negros, pareciam sumir a cada sorriso que dava, naquela formosura que não podia caber mais em corpo tão pequenino. Era muito invejada por suas vizinhas, cujos maridos dariam tudo por uma noite com ela. No entanto, só tinha tempo para o trabalho e olhos para seu marido. Limpava casas o dia inteiro, faxinava um edifício granfino aos sábados, era caprichosa, e não havia uma queixa com relação ao seu trabalho.
Romulo fora criado pela tia, nunca gostara de estudar e o máximo que conseguiu fora um emprego de auxiliar de pedreiro. Era preguiçoso, invocado, não admitia provocação, e desde o dia em que começaram a namorar, não tivera sossego. Cogitavam que Isaura encontrara nele um pai para o filho que gerara com algum homem casado. Os amigos o chamavam de “príncipe”, por sua imensa feiura, por ser o oposto do personagem de contos de fadas. Porém para quem desde de pequeno era chamado de “monstrinho” (diziam que a mãe morrera de susto ao pari-lo e que mesmo Deus o esquecera), príncipe até que não era tão ruim...
Isaura não agüentava mais tanta desconfiança, quando chegava o encontrava caído, fazendo sempre o mesmo discurso, com palavras tão fétidas quanto seu hálito, e de tanto incomodar, de tanto insistir, ela acabou cedendo.
Jean era um viúvo para quem ela fazia faxinas semanalmente. Era um escritor de romances, um quarentão bem conservado e muito educado como todo bom francês. Dizia não ter amigos, encerrar-se no escritório, na solidão da noite, para fazer suas traduções, das quais retirava seu sustento. Viera para o Brasil ainda na adolescência, quando seus pais se separaram e sua mãe resolvera traze-lo a fim de retirá-lo do convívio com o pai, extremamente possessivo com tudo em que houvesse posto as mãos. Isaura olhava hipnotizada para a tatuagem que Jean tinha no pulso esquerdo, já que era canhoto, com a inscrição de um nome: “Martin não-sei-do-quê”. Porém ele se desconcertava com sua curiosidade e tratava sempre de escondê-la com a pulseira do relógio. Casara-se, mas não tivera filhos, e pelo que conseguira deduzir dos poucos retratos abandonados na estante, a mulher era de saúde frágil, loura como ele, corpo sem curvas, aparência de quem o acordara muitas madrugadas com choros mal abafados, talvez pela intuição da morte próxima. Mas nada perguntou, deixava que seu silêncio falasse, que aquele apartamento sussurrasse as respostas que aos poucos se fizeram mais necessárias sem que pudesse perceber. Gostava de ouvir sua voz grave, límpida, ao contrário da de Romulo sempre pastosa e alterada pelo álcool. Vez por outra ele recitava algum poema que ela não entendia direito, mas ditos com aqueles olhos azuis tristonhos, faziam-na querer beijá-lo, aninhar em seu colo aquele menino arredio, que se esforçava para não deixar sua emoção desabar diante dela. Ficava a escutá-lo com os lábios semi-abertos, as mãos repousadas nas coxas, ora ajoelhada, enquanto trançava os cabelos para voltar a esfregar o chão, sem se dar conta do quanto era custoso para o homem segurar o ímpeto de agarrá-la.
Um dia ele lhe recitou um trecho de Werther. Seus olhos embaciados de lágrimas cruzaram com os seus, e o amor aconteceu no carpete, sem explicações, em meio a muitas celebridades literárias que a tudo assistiram silenciosas.
E depois dessas, vieram muitas outras, em vários lugares da casa. Romulo não a tocava mais, ficara impotente, resultado de anos de cigarro e cachaça. O filho nascera um pouco antes disso acontecer... Mas Isaura ficou grávida novamente e não tinha como esconder as suspeitas que o marido lhe apontava desde o início do casamento.
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