segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 1

O Ferro-velho



Temporal


Um cachorro uivou lá da esquina. Na rua deserta, calada. Um uivo triste, tão triste que até parecia que o animal queria dizer alguma coisa, mas sua mensagem era intangível aos ouvidos humanos.
O ar estava abafado, sufocante. A chuva não tardaria a vir. Já relampejava em seus lençóis e um vento muito chocho balançava mornamente a cortina.
Ele roncava ao seu lado. Roncava despreocupado, um ronco de quem cozinhou o dia inteiro naquele sol desmontando e empilhando carros. Carros usados, carros batidos, carros mortos...
Morar naquele ferro-velho era como viver no passado, no passado de quem não se conhece, fazer parte de uma tragédia a qual um estranho houvesse sucumbido ou visto sua vida se transformar em um verdadeiro inferno. Mas ele ressonava, parecendo não dar muita importância a isso.
Alina escondia o rosto a cada clarão que iluminava o quarto humilde. A cama baixa rangia a qualquer movimento que se fizesse, por isso, em suas noites de insônia, tratava de ter muito cuidado com ela, para que não acordasse Josué em seu sono agitado.
Agora lembrava: despertou assustada, sonhara com o irmão. Irmão? Era tão confuso lhe chamar assim...O sonho era em preto-e-branco, num lugar esquisito e sombrio. Achou que foi o cachorro que uivara...era engraçado, por ali não havia cachorros, não havia uma alma sequer naqueles confins... A casa mais perto ficava a 15 km dali. Levantou-se vagarosa, procurando segurar o ventre de sete meses que por vezes era responsável pela sua falta de sono. A camisola suada desprendia um cheiro característico, um cheiro dizendo que ele havia lhe tocado aquela noite. Sim, ela sabia que não poderiam fazer isso, o médico avisara que a gravidez era de risco, que ela era muito nova para ter um bebê, que seus ossos ainda não estavam preparados... que qualquer esforço poderia debilitá-la ainda mais e matar o feto que esperava. Mas ele não era a mulher de Josué, portanto, na hora em que este a procurou, prontamente atendera-lhe o pedido, apagando o lampião que pendia do oratório.
Josué não era mau. Era apenas maltratado pela vida, endurecido pelas pedras que exigiram músculos mais fortes que seus braços franzinos podiam oferecer...Mas de uma coisa tinha certeza: Josué não tinha medo do trabalho, parecia até uma besta carregando seu feno enferrujado, nos ombros agora largos e definidos. Os cabelos compridos encaracolados, ungidos masculamente pelo sol do meio-dia, faziam Alina equivocar-se quanto aos seus sentimentos, num misto de ternura e medo. Faziam-na quedar-se sob o mormaço, esquecendo a marmita que esfriava em suas mãos.
Josué era assim: não gostava de parar o serviço para comer em casa. Aliás, detestava ser interrompido em seja o que estivesse fazendo. Se acontecia algo que saísse a sua rotina, ficava louco, enfurecido mesmo, e não havia o que o acalmasse. Nesses momentos, Alina sempre que podia, trancava-se no banheiro e ali ficava, encolhida, até que a raiva do marido desaparecesse. Muitas vezes isso se dava a custo de alguns capôs de carros amassados, ou vários buracos cavados incansavelmente que Alina tinha de tapar depois, para que as galinhas e seus pintinhos não caíssem nem se tornassem vítima daquela estupidez momentânea.
Havia uma coisa que a deixara intrigada: de certo modo agravou seu temor pelo marido... Um raio iluminou por instantes seu rosto aterrorizado; pegou os chinelos e calçou-os no desespero, nos pés inchados, segurando o fino casaco que a ventania furiosa molestava. Correu o quanto pode e, ao virar para o outro lado do galpão, sentiu que braços fortes a apertaram. Gritou, esperneou, pensou que fosse abusar dela, mas o homem apenas tapou-lhe a boca, fazendo-se aparecer das sombras.
- Cala a boca! Eu não te disse para não vir aqui!?... Estava preocupado... – sua voz se abrandou chegando até a se tornar amável – vi que não estava na cama. Não venha mais aqui, está bem?
Alina balançou a cabeça assustada, sem refletir no que Josué lhe pedia, com a nítida impressão de que ele ainda a amordaçava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário