Sacudiu o jornal e pigarreou. Fazia isto muitas vezes. Era um gesto em conjunto, o ato de sacudir as folhas, o barulho do papel a roçar no outro, o cheiro do impresso nas narinas e por fim, o pigarro. Não sabia o porquê de ter de fazê-lo. Se era a tinta que lhe incomodava ou os olhos que lacrimejavam ao antever a poeira do jornal. Sentava-se sempre à mesma mesa, pedia sempre a mesma coisa. Uma água com gás e uma empada de frango. A empregada com ar muito enfadado não lembrava-se ou fingia não lembrar de seu pedido frequente. Sempre perguntava-lhe se queria um café. Aliás, a sua relação com o café era um bocado estranha. Amava-lhe o perfume que ficava no ar, gostava do som das últimas gotas a cair para a xícara, mas odiava o gosto. Era como lhe tirar o encanto, como comer morangos depois de sorvete de morango. Perdia toda a graça.
Olhou para o vidro à sua direita. Via as pessoas a andarem encolhidas pelo frio e pela chuva. Não era raro alguém entrar e pedir alguma coisa que fosse, pelo simples fato de ficar protegido até o pior passar. A chuva abrandava e eles armavam os guarda chuvas, as capas e partiam. Porém desta vez a chuva estava lânguida e distraidamente jogava-se nas pedras da calçada, no asfalto, nos carros. Beijava os postes mal iluminados e a mochila de alguns desavisados. Pouca gente entrou em busca de abrigo. Olhou para os lados e viu as mesas quase todas vazias a não ser por um jovem casal a trocar sorrisos e cochichos e uma senhora muito muito velha que bebericava um chá com metade da torta inacabada há duas horas.
Queria não pensar, mas aqueles dias de chuva lhe traziam o fantasma dela. A mulher que deixou para poder seguir sua vida tão repleta de gozo material mas nenhum amor. Casou-se, teve três filhos, mas jamais fora tocado por este sentimento arrebatador do que quando jovem. Vinham à baila as sombras, os risos e os cabelos castanhos. E por mais que aqueles dias tenham ficado no passado, nunca vieram tão vivos e em cores como nos últimos anos. Devia ser da viuvez. Ou do afastamento dos filhos que sempre o acusaram de não ter sido mais presente. Agora eram eles a domar suas vidas, desta vez com seus próprios filhos. Agora eram eles a partir para mais uma dança junto aos seus outros fantasmas.
Não soube nada dela, além daquela festa, do vestido cor de pérola a lhe avivar a cintura de ampulheta. No entanto acordava e adormecia com aquela imagem, tanto que optava por sair, ver outras gentes, participar um pouco do mundo. E talvez seja por isto que agarrava o jornal como um náufrago avistava a esperança. E a cada pigarro, um suspiro por não estar ainda de volta aquele fatídico baile. Aquela única vez em que fora feliz.
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