sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Elisa (parte 4)

Elisa tinha escutado a parteira e tentava apertar a barriga, procurando algum sinal como aqueles que tinha lhe presenteado semanas antes. Um chute, um pé no umbigo. Nada. Permanecia tudo em silêncio dentro de si. Stephane preferiu dormir no quarto de hóspedes para lhe dar mais conforto e Marie dormitava encostada na cadeira ao lado da cama. Lágrimas grossas rolaram, entrando nos lábios, salgando a saliva. Nunca lhe passou pela cabeça pôr a vida do pequeno em risco, mas inconscientemente fora tudo que fizera nestes meses. Talvez fosse uma forma de machucar o marido ou a imagem de esposa que estava se tornando. Tola, tola! Repetia para ela mesma. Se pudesse voltar atrás... 
A mão continuava pousada sobre o ventre numa esperança teimosa de que ainda havia outro coração a pulsar além do seu. De repente, entre súplicas silenciosas à Virgem e ao padre Jacques, algo mexeu-se. No início pareceu uma revoada de pequenas bolhas e depois, de forma mais vigorosa, empurrou-lhe a carne formando um coto. A jovem sorriu entre lágrimas: 
- Ele vive! Ele vive!
Pela manhã, Marie trouxera um copo de leite morno e vibrou ao saber da novidade. Stephane surgiu somente durante a tarde, já aliviado por saber que estavam bem. A parteira achou melhor que a esposa passasse o resto da gravidez em repouso absoluto. Desta forma, por todo o período que faltava e inclusive na primeira quarentena do bebê, Marie ficaria a dormir no quarto ao lado para auxiliar sua senhora.
 O homem sentou-se muito próximo e em um movimento que não era comum, pousou a grande mão sobre a barriga de Elisa. Sentindo o toque, o pequeno ser revirou-se e pela primeira vez o Campeão do rei pôde sentir a vida que ajudara a gerar. Tinha os olhos úmidos e imaginou que por instantes quase perdera ambos. Apesar de sua vida notívaga, não estava mais acostumado a ser só. E se esta necessidade de ter os seus por perto era amor, não sabia, aliás, de amor não sabia nada além das canções dos  trovadores quando os havia na taberna. Com a mão desocupada, retirou um objeto do saco que trazia, colocando-o na mesa perto da cabeceira. 
- Toma, o padre Jacques garantiu-me que ainda não leste este aqui. - Beijou a mão da moça e deixou-a, ainda a tempo de escutar  um "obrigada" em uma voz tímida e fugidia.
Os dias passaram vagarosamente, já havia registrado todas as ilustrações do livro de horas que Stephane lhe ofereceu de aniversário. A parteira a visitava regularmente, pelo menos uma vez na semana. Era a forma do marido mostrar toda sua preocupação para com o destino dela e do rebento. Sabia que estava para parir a qualquer momento, sentia as costas doloridas, o peso dele em suas entranhas que a reviravam por completo até quase ter certeza de que a pequena parte de seu pulmão, habitava espremido na garganta. Naquele dia sentia-se particularmente enjoada, não conseguiu comer nada por mais que Marie insistisse. A criada notando seu mal estar, resolveu não se ausentar para muito longe. Quando Elisa tentou sentar-se, uma dor funda lhe percorreu a espinha e não muito tempo depois, um líquido quente jorrou pelos lençóis não sabe se trazendo alegria ou medo.
 A certa altura perdeu a noção do tempo. As vozes foram ficando cada vez mais pequeninas, a visão lhe parecia embaçada. Apenas escutava de muito longe: faz força! Empurra! E Elisa desmaiava com aquela dor que queria revirá-la do avesso. Gruía quando era acordada aos tapas pela parteira e pelos gemidos ansiosos de Marie. O quarto cheirava a sangue e seu próprio suor. Dava graças por não ver grande coisa além disto, pois se visse ia desesperar-se com a quantidade de panos encarnados que se encontravam encharcados. Ouviu a mulher gorda a falar para a outra que a criança não saía porque estava atravessada. Sentiu que ela depositou os braços pesados e fez força, girando sobre sua barriga. Empurra! Ouviu por entre dentes e obedeceu como se sua vida dependesse disto e na verdade dependia. Juntou as resmas de vitalidade que tinha e fez, seu ato encheu as mãos da criada que sorria enquanto um corpo minúsculo se debatia entre vagidos.
- Este nasceu com sorte. Ainda tem o verão pela frente para se fortalecer, quando o frio chegar já deve estar preparado. Só temos de garantir que ela tenha bom leite. Dê-lhe muita cevada. - dirigia-se à Marie que já tinha a criança mais ou menos limpa entre os braços.
Elisa dormia enquanto Stephane lhe beijou os lábios com Dominic no colo. Ela abriu os olhos e ele lhe confidenciou: é homem! Ela não fez qualquer menção de pegá-lo, estava completamente entregue à exaustão. Tinha lutado mais de doze horas e só o que queria depois de saber que estava tudo bem, era entregar-se ao sono dos justos.
Dominic chorava quando lhe tirava do peito. Mas Elisa sabia que não mamava, apenas gostava de sugar seus mamilos. O marido tinha lhe sugerido uma ama, podia lhe pagar uma camponesa das redondezas para vir algumas vezes por dia alimentá-lo, mas ela não quis. Já sentia-se mal o suficiente por  ter tido uma gravidez irresponsável. Olhou para o lado vazio da cama: Stephane se encontrava por trás dos muros do rei. Lá, naquele castelo o qual ele tanto falava e que tinha as melhores comidas e músicos que havia escutado. Elisa pensou com algum desgosto que por certo as mulheres mais belas também.
 Fazia quase um mês que não o via, para o seu azar Stephane era um dos cavaleiros de confiançaos quais o rei mantinha para guardar a rainha quando ele não estava. Viviam uma vida de guerras, em algum lugar sempre havia um herdeiro insatisfeito, um vassalo que não fora recompensado devidamente, um casamento mal arranjado, qualquer coisa que desequilibrasse o frágil sistema, explodia em disputas e mortes. Até quando todos os reis subjugassem sua sede de poder sob a égide de apenas um, Elisa imaginava que teria muitas noites ainda sem o marido por perto. Estranhamente sentia sua falta, quando não bebia, Stephane era um marido atencioso e um bom pai que garantia-lhes que nada faltasse em sua casa.
O filho aprendeu a segurar sua própria cabeça e ela sorriu enquanto lhe acariciava os cabelos negros e finos:
- Agora que já  ergues o maior bem que possues, nunca meu Dominic, nunca a abaixes para ninguém que não mereça.

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