terça-feira, 23 de abril de 2013

Dona Inês

D. Inês mexia nervosamente os pezinhos enfiados em chinelo carmim. Colocava e voltava a tirá-los, colocava e voltava a tirá-los. Ela sabia que esta mania incomodava o marido. Podia ouvir a sua respiração pesarosa por detrás do jornal e dos óculos de moldura severa, tal qual seu dono. Ela sabia que estava a chegar a hora, este era sempre pontual. Com que roupa viria? O que traria consigo desta vez? Um ramo de rosas ou uma caixa de bombom? Ou... riu-se baixinho a imaginar o que ia dentro da sacola de uma sex shop. De repente os ponteiros do relógio resolveram brincar, não andavam. Simplesmente balançavam para lá e para cá, no movimento nervoso dos seus chinelos. Suspirou e olhou para a tv muda, há tempos não contentava-se com nenhuma novela e os programas de auditório pareciam ainda mais histéricos do que quando tinha paciência para assistí-los, já ia um par de anos... Achava que seu passatempo agora era bem mais natural para uma velha senhora de robe de bolinhas brancas e chinelos carmim. De repente a porta do elevador gemeu, foi reclamando enquanto vagarosamente fechava com um estrondo do ferro a bater no ferro. Era ele possivelmente. Podia sentir o perfume almiscarado cobrindo o corpo que lhe parecia esbelto, embora ficasse distorcido pelas suas lentes. Levantou cuidadosa em direção à porta. Como boa alcoviteira, fechou no caminho a claridade da cozinha para que não vissem seus pés diminutos pelo friso da porta. Os passos apertavam no corredor. Toc toc toc. Graves, era um sapato bom, sola de couro. Podia agora ver a nuca do homem, o cabelo bem cortado e as costas largas em um paletó negro. Deu dois toques de leve com o dedo: era o sinal. Silêncio. O homem olhava para a porta do elevador, talvez com medo de que alguma coisa ou alguém lhe pudesse denunciar. As paredes tem ouvidos e as portas tem olhos, pensou D. Inês, mas ainda são mudas meu filho. A porta permanecia fechada, às vezes a vizinha gostava de se fazer de difícil. Ele pigarreou, olhou para o relógio, mas ela tem certeza de que não viu as horas, apenas os milésimos de segundos que passou estancado à porta verde de trinco dourado. Ajeitou a alça da sacola. Hummm era escura, não dava para ver o que era. D. Inês subiu nos dedos o mais que pôde. Maldito do Zé que sempre esquecia de que não fora favorecida pela natureza. Não conseguiu saber, a vizinha abriu a porta e engoliu o homem na escuridão do apartamento. Ela saiu e voltou a sentar no sofá. Os pés balançavam nos chinelos, o olhar perdido entre as velhas da televisão e a apresentadora que gritava e ria escandalosamente sem emitir nenhum som. O único barulho era o jornal do marido e da sua respiração. Uma hora e meia depois o homem saía, os sapatos a ecoar no corredor vazio e iluminado pelas luzes de emergência. Vinte minutos depois, era o das botas de borracha. Às vezes vinha com macacão e uma maleta de metal, às vezes com um frango assado que comprava do outro lado da rua. Mas vinha sempre de botas. Oh céus como rangiam. Rangiam as botas no corredor e rangia a cama e rangia a mulher. Depois um senhor muito magro e baixo. Tinha bigode e uma roupa de corte ultrapassado pela moda. Depois o das tatuagens e calças largas. Tinha um crucifixo tatuado na nuca, este fazia a vizinha rezar muito. Também havia o da moto, professor de jiu jitsu, o representante de remédios. Não eram todos em um dia só, revezavam-se. Saberiam uns dos outros? Especulava para o marido, que só lhe respondia para que parasse de querer saber da vida sexual da vizinha. Mas muitas vezes não era dela que queria saber, era do corno. O último homem a chegar à casa tinha passos de sapato barato e solas gastas. Abria a porta com dificuldade, atrapalhado com uma criança pela mão e outra menor no colo. Sua careca suava enquanto fazia aquele que deveria ser o seu único exercício do dia. D. Inês tinha vontade de abrir a porta para cumprimentá-lo, perguntar qualquer coisa sobre o tempo ou reclamar que a faxineira não havia limpado o hall do prédio. Mas não conseguia, por mais que quisesse não conseguia olhar para o homem de olhos azuis, com duas crianças penduradas e mochilas e chaves. Tinha medo dele ver que sabia. Tinha medo de ver que ele por sua vez também sabia. E o olhar de um corno é das coisas mais tristes que há... Talvez devesse reconsiderar a ideia da neta e inscrever-se em um programa de auditório. Ela tinha razão: deveria ser apenas uma velha como as outras.  

2 comentários:

  1. Obrigada Sexinho! Olha ainda estou à espera da continuação do teu, não me esqueci, viu?!
    bjs

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