Doze anos de silêncio
Uma rodela de limão derrotado, que mostrava as felpas de seu bagaço sobre a água do gelo derretido, entretia seu olhar. Passou a unha escrupulosamente pintada de cor-de-café pelo copo suado. Tinha algo de obsceno naquelas gotas do cilindro magro e comprido. A moça com o yorkshire passou mais uma vez, e já contara sete voltas das nove que dera. Distraíra-se com o céu azul, com o dia frio, porém ensolarado, raro de outono. Isaura descruzara as pernas (aquele sapato a estava matando) e desculpara-se ao roçar nas calças do marido. Ele olhou-a intrigado, pegou em sua mão novamente e continuou a fazer piruetas com seus dedos ossudos. Disse-lhe então, com muita delicadeza:
- Há três anos que me traz aqui nesse bar, que insiste em sentar na mesma mesa e cadeira, que olha para a torre e não me diz nada. Simplesmente olha para o céu, para tudo e não me enxerga. Quer falar alguma coisa difícil, eu sinto que quer, mas não diz, e confesso que tenho medo de ouvir, medo de que os lábios que aprendi a amar me refutem com palavras de fel. Porque, Isaura, porque o mesmo dia, o mesmo horário? Porque aqui? – por uns instantes ele mira-lhe os olhos negros, vê-se refletido em seu vazio, sente-se só, duplamente só. – escuta, estou preparado, diga o que quiser, vou entender: prometo. E se você... – Isaura interrompe-lhe com uma das mãos.
- Não é nada disso. Eu te amo, amo, sempre amei. Como você já sabe, é uma coisa muito difícil, é um segredo.
- Confia-o a mim, por favor.
- Não é tão simples...tenho medo.
- Nada feri mais que o seu silêncio. Acredite. – disse com tanta intensidade, carregando no erres (falava em português com ela para que não se sentisse tão deslocada naquele país), que ela cedeu às palavras e ao choro; pegou o caminho de volta àquela tarde quente de setembro.
- Nós tivemos um filho...um filho, Jean!! – ia cuspindo as palavras, em uma logorréia infinda. Falou-lhe de Romulo como nunca o dissera, não o poupara de nada, das surras, dos estupros com a garrafa de cachaça, da miséria em que criou o primeiro filho e finalmente da gravidez e do nascimento da filha, naquele dia. – durante todo esse tempo, nem ao menos sabia se fora indiscreta (Diabos, aquela gente com mania de sussurrar! Depois faziam filmes para escandalizar seus modos frios...), se levantara a voz ao expor sua podridão, mas se assim agira, não se envergonhava, por muito tempo envergonhou-se de suas lembranças. Quando se calou, pode sentir o olhar de Jean sobre ela, não o via, mas podia sentir mágoa, reprovação, perguntas desordenadas prestes a explodir em sua face. Ao invés da enxurrada de emoções, o marido limitou-se a uma pergunta, e talvez a tivesse escolhido a dedo, golpeando-a com os olhos azuis:
- Como pôde? – Isaura fitou-o exausta, tinha o ralo buço suado, as bochechas ruborizadas. Não tinha fôlego para mais nada, estava entregue ao seu julgamento. Com muito esforço murmurou:
- Você disse que ia perdoar...não importava o que fosse, disse que ia perdoar... – levantando-se da cadeira, Jean atirou com raiva as luvas de couro (ele sabia como a enfurecia andar com as mãos geladas, mãos tão magras aquelas!) sobre a mesa. Mas disse baixo:
- Durante todo esse tempo...como pode me esconder? Diz, como posso perdoar...é um filho, Isaura, um filho que você relutou em me dar e, estava lá, além do oceano, longe de mim... – pensou em ir, mas deu meia volta: precisava saber – Quanto tempo? Quantos anos?
- Doze... – sua voz saiu sumida, tinha a impressão de que só saíra a fumaça da respiração. E foi a última coisa que Jean escutou, depois disso virou-lhe as costas e correu em direção à Torre Eiffel como se esta fosse a esfinge que pudesse devorá-lo.
Isaura chorava, olhava ao redor e chorava, tudo a fazia chorar. Olhou para as mãos nuas do marido, ao longe, e chorava.
Uma rodela de limão derrotado, que mostrava as felpas de seu bagaço sobre a água do gelo derretido, entretia seu olhar. Passou a unha escrupulosamente pintada de cor-de-café pelo copo suado. Tinha algo de obsceno naquelas gotas do cilindro magro e comprido. A moça com o yorkshire passou mais uma vez, e já contara sete voltas das nove que dera. Distraíra-se com o céu azul, com o dia frio, porém ensolarado, raro de outono. Isaura descruzara as pernas (aquele sapato a estava matando) e desculpara-se ao roçar nas calças do marido. Ele olhou-a intrigado, pegou em sua mão novamente e continuou a fazer piruetas com seus dedos ossudos. Disse-lhe então, com muita delicadeza:
- Há três anos que me traz aqui nesse bar, que insiste em sentar na mesma mesa e cadeira, que olha para a torre e não me diz nada. Simplesmente olha para o céu, para tudo e não me enxerga. Quer falar alguma coisa difícil, eu sinto que quer, mas não diz, e confesso que tenho medo de ouvir, medo de que os lábios que aprendi a amar me refutem com palavras de fel. Porque, Isaura, porque o mesmo dia, o mesmo horário? Porque aqui? – por uns instantes ele mira-lhe os olhos negros, vê-se refletido em seu vazio, sente-se só, duplamente só. – escuta, estou preparado, diga o que quiser, vou entender: prometo. E se você... – Isaura interrompe-lhe com uma das mãos.
- Não é nada disso. Eu te amo, amo, sempre amei. Como você já sabe, é uma coisa muito difícil, é um segredo.
- Confia-o a mim, por favor.
- Não é tão simples...tenho medo.
- Nada feri mais que o seu silêncio. Acredite. – disse com tanta intensidade, carregando no erres (falava em português com ela para que não se sentisse tão deslocada naquele país), que ela cedeu às palavras e ao choro; pegou o caminho de volta àquela tarde quente de setembro.
- Nós tivemos um filho...um filho, Jean!! – ia cuspindo as palavras, em uma logorréia infinda. Falou-lhe de Romulo como nunca o dissera, não o poupara de nada, das surras, dos estupros com a garrafa de cachaça, da miséria em que criou o primeiro filho e finalmente da gravidez e do nascimento da filha, naquele dia. – durante todo esse tempo, nem ao menos sabia se fora indiscreta (Diabos, aquela gente com mania de sussurrar! Depois faziam filmes para escandalizar seus modos frios...), se levantara a voz ao expor sua podridão, mas se assim agira, não se envergonhava, por muito tempo envergonhou-se de suas lembranças. Quando se calou, pode sentir o olhar de Jean sobre ela, não o via, mas podia sentir mágoa, reprovação, perguntas desordenadas prestes a explodir em sua face. Ao invés da enxurrada de emoções, o marido limitou-se a uma pergunta, e talvez a tivesse escolhido a dedo, golpeando-a com os olhos azuis:
- Como pôde? – Isaura fitou-o exausta, tinha o ralo buço suado, as bochechas ruborizadas. Não tinha fôlego para mais nada, estava entregue ao seu julgamento. Com muito esforço murmurou:
- Você disse que ia perdoar...não importava o que fosse, disse que ia perdoar... – levantando-se da cadeira, Jean atirou com raiva as luvas de couro (ele sabia como a enfurecia andar com as mãos geladas, mãos tão magras aquelas!) sobre a mesa. Mas disse baixo:
- Durante todo esse tempo...como pode me esconder? Diz, como posso perdoar...é um filho, Isaura, um filho que você relutou em me dar e, estava lá, além do oceano, longe de mim... – pensou em ir, mas deu meia volta: precisava saber – Quanto tempo? Quantos anos?
- Doze... – sua voz saiu sumida, tinha a impressão de que só saíra a fumaça da respiração. E foi a última coisa que Jean escutou, depois disso virou-lhe as costas e correu em direção à Torre Eiffel como se esta fosse a esfinge que pudesse devorá-lo.
Isaura chorava, olhava ao redor e chorava, tudo a fazia chorar. Olhou para as mãos nuas do marido, ao longe, e chorava.