segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 5


Acerto de contas


Ele chegou no balcão do bar e pediu o trago mais forte que tivessem. Precisava tomar coragem, ir em frente sem fraquejar: a cachaça é o remédio dos fracos...Mas ele não se achava um. Remangou o punho sujo, cuspiu o resquício da bebida e aproximou-se do homem que estava na outra extremidade. Havia cheiro de sangue no ar, todos sentiam. Aprenderam com a experiência e as cicatrizes...e quem não as tinha? Devagar, foram se afastando, abrindo espaço para a confusão que tomara conta daquela espelunca.
Seus passos eram amortecidos pelo rádio mal sintonizado. Ele seguiu lentamente, como uma leoa certa de seu triunfo sobre a caça. Armou o canivete e degolou-o. Seu pai caiu sem soltar o menor gemido. Parecia que já o esperava, parecia saber que aquela discussão à noite passada não iria ficar por isso mesmo. Sua imobilidade era mais perturbadora do que se tivesse tentado reagir. Mas quem era ele para o impedir de entrar em casa, para dizer o que bem entendesse? Um bêbado...um aleijado...Seu corpo estendido abrandou a raiva do filho, que saiu sob os olhares dos fofoqueiros. Emudecidos, estes, se convenceram do assassinato “justo”, fora por honra, sabiam que aquele traste não valia nem os chinelos que calçava...
Tomou o caminho de casa antevendo o que pegaria para levantar uma “grana”. Vida nova eram as palavras que surgiam em seu pensamento como luzes em néon, promessas de uma vida de prazeres, mas que sabia, no fundo, não ser muito diferente dessa.
Ao chegar perto do casebre, bateu de frente com Marcinha que lhe olhou curiosa com uma pergunta no rosto maquiado. “Andava na zumba, moleque?”. mas não disse nada. O travesti passou discreto, com a cabeça baixa, deixando um rastro de glitter colorir a poeira habitual. “Zumba”, é claro que eles achavam que estava na “zumba”, uma espécie de exilo quase voluntário se é que dá para entender...Está zumbado quando se dá um furo, quando se volta atrás no que fora prometido, e principalmente quando quem se prejudica pela besteira é alguém respeitado pelo morro. Mas graças a Deus ele não estava zumbado: seus motivos se estendiam além do que almas curiosas poderiam especular.
Esperou que Marcinha se afastasse para derrubar a porta de casa, pois o pai tirou-lhe a chave na última briga que tiveram. Um ruído opaco se seguiu. Não foi preciso muito esforço: estava ficando cada dia mais forte e os cupins juntamente o ajudaram. Era uma pena encontrar a casa naquele estado, suja, abandonada...Quando sua mãe ainda morava com eles isso nunca aconteceu. De repente sentiu saudades dela e imaginou aonde ela poderia estar...Recordou-se do bolo de cenoura que ela fazia tão bem...mas não conseguia sentir mais seu cheiro como na infância, ele apagava-se aos poucos de sua memória.
Enquanto fazia as trouxas com o que conseguira arrecadar, via Alina correndo por entre suas pernas, rindo, arrastando sua boneca de pano. Ele pegou-a em pensamento e saiu por aquela porta carregando-a na garupa, em direção à mesa de fla-flu que seus amigos freqüentavam, como tantas vezes fizera. Lembrou-se ainda das fraldas que trocou com nojo e do choro que o acordava toda santa madrugada. Às vezes passava a noite sentado na cama, com a vela acesa sobre o criado-mudo, afagando sua cabecinha, acalmando os gritos de indignação pelo abandono materno. Tinha gana de contar para a mãe que ele não tinha obrigação de fazer aquilo, e que apesar de gostar dela, desejou ardentemente que Isaura a tivesse levado.
Ele foi pai aos nove anos. E isso o marcou de maneira profunda: não tinha tempo para brincar nem estudar, largara a escola ainda com a terceira série incompleta, e foi para as ruas, pois elas davam mais lucro do que um emprego decente. A irmã, muitas vezes um peso em sua vida, foi o que amenizara sua falta de sorte. Sentia-se recompensado, quando após tanto esforço para mantê-la alimentada e vestida na medida do necessário, recebia um terno sorriso de agradecimento e, mesmo dizendo-lhe que era seu “irmãozinho grande”, a menina não pode evitar nos primeiros anos, em chamá-lo de pai.
Colocou as duas trouxas nos ombros e deixou a casa. O olhar de reprovação e deboche do pai iria ficar para trás, como a porta derrotada da maloca. Todos pensariam que Romulo fora o responsável pela gravidez de Alina e dariam razão pelo crime cometido e, não somente isso, como também o esqueceriam em meio a tantas tragédias que preenchem seus dias. Na realidade, não tinha necessidade de matá-lo, o próprio tempo se encarregaria disso, contudo, ser comparado a ele era inaceitável, e jurara que assim o faria quando retornasse.
A terra seca grudava-se nas vestes, nas sandálias, na cabeça... Talvez por isso aquela gente fosse tão violenta e tão seca. A terra impedia de pensar, a terra sufocava, irritava tanto que quando alguém tinha dor de cabeça, se dizia que estava com terra (minúsculas pedrinhas) roçando no cérebro...E só quem a tinha entranhada nas narinas todos os dias, sabia da conseqüência funesta. E quando chovia ao invés de melhorar, piorava: o barro se colava nas pernas e tornava o caminhar mais odioso e pesado. Uma velha com os lábios escondidos nas gengivas, resmungou da sua janela ao vê-lo praguejar: “não embrabece meu filho, um dia, é essa terra que te carregará”...

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