terça-feira, 22 de junho de 2021

Eles


Olhou para os pixels que formavam de muito muito perto o par de olhos azuis que a encaravam. Por mais que aumentasse o zoom no telefone daquela fotografia guardada, escondida, não era capaz de decifrá-los. Continuavam a encará-la desta vez de longe, contornos definidos em incerteza. Desceu para a boca emoldurada por uma barba castanho-dourada e macia (ainda podia lembrar do toque gentil e das cócegas quando roçou de leve os seus lábios). A boca cerrada com as palavras que ela inutilmente tentou lhe arrancar, os cabelos que começavam a subir formando tímidos caracóis que ele não iria permitir por muito tempo. Lembrou dos dedos grossos quando estes se fecharam em sua cintura com força, dos braços que a ergueram um metro do chão quando enfim suas pernas o abraçaram. Os beijos úmidos descendo pelo pescoço, seus gemidos sufocados pelo medo de ser descoberta. Lá embaixo eles dançavam, encaixavam o que não conseguiam com o resto; lá embaixo ele falava e ela o engolia, angústia e tudo... prazer, culpa e dor de uma vez só. 

Durava pouco os segundos em que suas respirações sincronizavam, em que esqueciam do quanto eram diferentes e do mundo que o
s separava. A idade, o casamento dela, o medo disfarçado em insolência dele. Contraiam-se como se seus corações estivessem entre suas pernas e ela tinha a sensação de que batiam um para o outro para que não morressem, movimento involuntário que ia perdendo as forças à medida em que os dedos dele a abandonavam e na forma relutante em que ela se desfazia do seu esperma no banho. Ela já sabe que iriam resistir e mentir para si mesmos que não aconteceria de novo, por semanas talvez, até ficarem tão exaustos que a única coisa que lhes restava era se entrelaçarem como animais no cio na cama dela outra vez. 

Seu nome era um mantra dentro de sua cabeça. Ela ouvia repetidas vezes: Jacques, Jacques, Jacques… em seus sonhos ele não tinha uma face. Era qualquer coisa de embaçado, misturado com o cheiro de amaciante de sua roupa. Não havia jamais sentido seu cheiro de homem, apenas o odor de flores em torno de seu dorso forte. Ela se perguntava como podia lembrar de tantos detalhes quando sonhava mas jamais de sua face, de seus beijos ou de sua voz tímida. Ele se lembrava de seu nome? Ele a teria em seus contatos de telefone ou apenas seria mais uma em sua lista de amigos no snapchat? Mordeu o lábio seco de resquícios de batom vermelho. Era hora de levantar. Abriu os olhos devagar. Esfregou-os certa de que os borrava de rímel. Não havia se desmaquiado antes de dormir. O marido ressonava ao lado. Barriga para cima, subindo e descendo como uma gangorra. Olhou sua silhueta no escuro. Ele não tinha culpa de nada, tampouco ela. Se o amor acabava um dia, era porque os dois se abandonaram dessincronizados em plena tempestade. Mas devia sentir culpa, Paulo sempre fora amoroso, gentil até ao ponto de mimá-la como uma criança. Vai ver foi esse seu erro. Cuidar demais. Amar depois. Paulo não podia ter filhos, nem sequer era o seu sonho, mas esteve ao seu lado quando ao ouvir a notícia se sentira menos homem. Tentaram por anos, três, quatro, até resolverem procurar ajuda. Ela desistiu mal, demorou a engolir que seriam apenas dois. Não que pensasse que ser mãe a completaria de alguma forma, mas era a sensação de haver qualquer que faltava que a angustiava. Aos poucos cessaram as perguntas sobre filhos e ela deixou de ir à sessão infantil para olhar as roupas minúsculas de recém nascido. Paulo engoliu em seco os vários meses em que ela lhe foi bruta nas respostas e nos gestos. Pensou em separar e não lhe passava qualquer ideia de adoção pela mente. 

Continua...

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