sexta-feira, 4 de julho de 2014

Bicicletar

Registro dos nossos primeiros passeios pela cidade.


Já pensei várias vezes em escrever sobre mobilidade urbana. E sobre bicicletas. E sobre não ter carro. Mas daí eu me lembro que soa um bocado hipócrita quando me vem à tona a cena dos baguetes a despencarem da proteção solar do carrinho carregado do Fabian enquanto atravessávamos a rua, assim como os olhos do marido, confiantes em mais umas quadras com dez quilos de sacolas em cada braço. De repente só me saem palavrões da cabeça, e a falta que faz a merda de um carro. Felizmente não precisamos para coisas do dia-a-dia, uma porque o Fernando trabalha a três minutos à pé de casa e outra porque a escola do Fabian dá mais ou menos o mesmo para o outro lado. 
Apesar disto, um carro não é considerado um artigo de luxo, com qualquer 1500 euros compra-se algum que quebre o galho. Inserir aqui aquela imagem do Batman tapeando o Robin com a legenda: um país desenvolvido não é aquele em que os pobres tem carro e sim aquele  em que os ricos andam de transporte público. Cala a boca Robin, sabe de nada inocente! Nunca vi nenhum rico que andasse de ônibus ou de trem ou de tram. A não ser que eu tenha uma falta de sorte do caramba, pois não peguei nenhum político em época de eleição. 
Para começo de conversa, os ricos não trocam a comodidade dos seus carros para andarem de transporte coletivo, o que acontece é que a classe média não tem urticária em andar de pé ou mais frequentemente, de pedalar. Vejo muita gente reclamando do trânsito de Porto Alegre, no entanto ninguém quer abrir mão de ter o seu próprio transporte. Aliás, comprar um carro ainda é considerado símbolo de status: o primeiro passo para a escala financeira e social que culmina na compra de um imóvel ou em um mestrado na Europa. Talvez seja um pouco de ingenuidade minha comparar a capital gaúcha com a alsaciana, visto que os números não mentem*, mas pode-se ter uma ideia do porquê dá certo investir em mobilidade urbana. 
Aqui os ciclistas são reis, e quando digo isto não é por uma questão de logística, onde vemos quilômetros e quilômetros de ciclovias, mas porque há um profundo respeito por eles, mais ou menos como quando se fala no comércio que o cliente tem sempre razão. O ciclista tem sempre razão, mesmo quando não tem razão. Os motoristas em sua maioria, obedecem ao código de trânsito, porém o campo "ciclístico" ainda é uma área meio república das bananas, com indivíduos andando na contra-mão, invadindo o espaço dos pedestres, forçando uma velocidade inapropriada em lugares proibidos, etc. 
 É claro que a geografia ajuda para a popularização deste meio de locomoção, Strasbourg é uma cidade muito mais plana do que Porto Alegre, e também mais segura. Se um carro é acessível com alguma economia, uma bicicleta é muito mais.  Podemos encontrar modelos a partir de 50 euros, sem falar que não é necessário pagar imposto anual nem seguro. Em todas as esquinas há dezenas de bicicletas trancafiadas em postes e árvores (porque nunca se pode dar chance ao azar); nas universidades, nas escolas, e em ruas principais, há estacionamentos cobertos para elas. As oficinas que as consertam vivem cheias e as maiores feiras que se tem para usados, são para comprá-las. Elas estão de tal modo inseridas na vida deles, que quando uma criança deixa as fraldas, já colocam-na um modelo sem pedais no meio das pernas para irem se habituando, e quando tem entre três e quatro anos passam frequentemente para as bicicletas com pedais e sem rodinhas. 
A "magrela" como carinhosamente chamamos bicicleta, não é só coisa para crianças, para quem gosta de esportes radicais ou para quem não tem dinheiro. Ela ocupa um lugar cativo no coração dos franceses. Ela é democrática, é tipo aquele pretinho básico, vai bem tanto com terno quanto com mini saia. Com salto ou chinelo de dedo. Vai na chuva, no frio e no sol da uma da tarde. Vai  bem com cadeirinha para levar o filho na escola, ou com cesta para ir no mercado, ao trabalho ou para a faculdade. E como um vulgar meio de transporte, seu condutor tem pressa, buzina, xinga. E é por isto que funciona: por andar ali entre o respeito por parte dos "motorizados" e a informalidade de fazer o que lhe dá na telha. Poderia mesmo dizer que este  bicicletar, mais do que uma paixão mascarada em neologismo, é o próprio manifesto do jeitinho francês em forma de mobilidade urbana.


*Strasbourg tem 272 mil habitantes, mais coisa menos coisa.

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