sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Rotina

Não pôde evitar olhar no espelho o seu rosto cansado no instante que durou o viajar da porta do armário do banheiro. Ele voltou a fechá-lo depois de espremer a pasta de dentes e da segunda vez ela preferiu olhar para o sinal que o marido tinha em cima do ombro, talvez a primeira coisa que reparara quando fizeram sexo anos atrás. Sentia a pele dos seios encostada às costelas, levemente caídos no grau de quem tinha amamentado dois filhos com pouca diferença de idade. Queria dizer-lhe e agora: o que fariam depois de tudo? Depois do mais novo retornar para a casa que dividia com a namorada? Não haviam afinal dito um ao outro que estavam juntos pelas crianças? E agora que já não há mais crianças senão aquelas presas sob os retratos envelhecidos da estante? 
Agarrou o pente e quedou-se a domar os cabelos pintados de loiro para disfarçar os brancos que surgiam cada dia um pouco mais. Os anos foram duros para ela, os anos e o mundo. O peso que caía sobre suas costas, a que ela ajeitava como quem arruma a alça de uma mochila pesada, agora cobrava-lhe implacável. As rugas espalhadas pelos cantos dos olhos, ao redor da boca...rastros das lágrimas e dos sorrisos que abandonara. Olhava para ele retirando as sobrancelhas brancas que manchavam a moldura espessa de seus olhos castanhos. Marcos sempre fora vaidoso, antes fazia a barba todos os dias, agora, faz barba, sobrancelhas, nariz e orelhas. A idade tem destas, começa a faltar cabelo onde tinha de ter e sobrar nos mais variados lugares. 
"Onde foi que nos perdemos?" Ele parou como se tivesse escutado o seu pensamento, mas foi apenas o tempo de mudar de mão a pinça e recomeçar o trabalho paciente que roubava-lhe mais de meia hora. Sabia que ele deitara em outras camas, que além de tudo, o emprego deu-lhe desculpas demais para tal. Mas sabia que agora isto não fazia a menor diferença, que já não sentia mais aquele ardor de mulher traída, nem mesmo o despeito por si mesma, visto que o ciúme daqueles centímetros de carne desapareceu tão logo desapareceram os seus orgasmos. E agora sabia mesmo sem querer, que as constantes idas ao celular, os assovios por nada, a benevolência em sua voz, eram indicativos claros  de que andava entre coxas tenras e jovens novamente. 
Houve tempos em que pensou em arrumar um amante também, mas suas tentativas foram tão desastradas ( o suposto "sarado do 69" era um antigo aluno seu) que desde então ela deixou-se de chats de encontros.  Ele tinha-na avisado que hoje não era para esperá-lo para o jantar, ela nada disse enquanto passava o rímel seguido do batom cor de cereja. Quando as horas passaram e o dia se fez noite, desistiu da lasanha que já esfriava no forno, foi até o congelador e pegou o pote de sorvete. Sentou-se a olhar para as luzes da cidade que acordava, pequenas estrelas cintilando  no asfalto. Enchia a colher e esperava o gelo derreter-se na boca, com a felicidade que a vida lhe dera de comer doces e nunca engordar. Não sabia quando o marido ia lhe responder a pergunta ou se ela de fato a faria. Porque já estavam tão acostumados com o passado, mais que acostumados, fascinados com as ruínas que construíram, que nenhum deles tinha vontade de virar-lhes as costas. Deitou-se depois de vestir a camisola de cetim e sentir os bicos dos seios saltados no tecido. Mas só conseguiu finalmente adormecer quando Marcos deitou-se ao seu lado e apagou a luz.

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