segunda-feira, 28 de abril de 2014

A vaga da discórdia

Adoro a lógica dos meus vizinhos, sério. Moramos em um terreno que possui duas casas grandes divididas e transformadas em apartamentos. Cada apartamento tem direito a uma vaga para carros e é de conhecimento geral que não temos (ainda) nenhum, visto que a vaga costumava estar vazia. Disse costumava porque ultimamente o vizinho de cima tem estacionado dois carros aqui. Eu procuro ser justa, mas isto está me incomodando, porque um dia recebemos visitas e a pessoa colocou na vaga dele sem querer. Ao invés dele colocar na nossa, fez questão de por na do lado e esperar em pé, na chuva e no frio até que as pessoas desocupassem a sua vaga. E depois com a maior cara de pau usa a seu bel prazer, há um mês o nosso lugar sem ao menos um pedido de permissão. Assim que a nossa voiture pousar aqui em casa, vai levar com uma plaquinha bem bonita para deixar de ser bicão. To só no aguardo...esperando...com um sorriso bem educado como manda a má educação francesa. 

"Ce poste est lié à l'appartement du rez-de-chaussée. S'il vous plaît ne pas l'utiliser."

domingo, 27 de abril de 2014

Telhado de vidro



Inscrevi-me em um grupo de discussão de jovens feministas há um mês e neste pequeno período já consegui enxergar muitas coisas que nunca tinha dado importância. Mais ou menos como achar que tudo esteve sempre lá e não há razão nenhuma para que a a ordem seja esta e não outra. Mas o que tenho notado agora, nem é tanto a questão do movimento feminista por si mesmo, mas a forma como as pessoas se relacionam, ainda que virtualmente. A quantidade de mal entendidos que afloram pelo simples fato de não estarmos atentos a outros sinais que estão a nossa disposição em uma conversa física: o olhar fugidio, o tom da voz, a risada ou a voz tremida. Uma coisa que é dita de forma neutra pode ser interpretada como um pavio aceso, pois que a pessoa sente-se atingida, ofendida e sei mais o que. À parte questões óbvias a nível de desconstrução de um discurso racista, classista, machista a que fomos habituados desde a infância, noto que também há uma certa apropriação do que escrevemos para questões pessoais mal resolvidas.
E digo isto porque hoje ao falar com uma amiga no Brasil sobre o post do meu blog que ela também está acompanhando, tenho me deparado com respostas e agressões que estão além do que acho um nível normal de indignação.  E ela disse que para começar, eu deveria ficar feliz, que o meu objetivo está a ser alcançado. A gente incomoda quando pensa diferente. Eu por alguma razão, incomodo estas mulheres. Porque hein? 
O interessante é que dá para ver direitinho quem discorda sem levar para o lado pessoal e quem sente-se ferido e irritado porque eu tenho o direito de pensar de outra forma. 
Aproveitei a ideia para pensar no quanto eu fiquei incomodada com este grupo no início. Como ele atingiu meus preconceitos, meus medos, meu racismo. Sentei e observei. Critiquei (aqui comigo) e li e li e li. E procurei ter  empatia com o crossdresser que colocou suas fotos vestido de mulher, procurei ver o sofrimento da jovem negra que ainda hoje tem raiva de gente branca, procurei ver a pouca flexibilidade minha e alheia para com a dor dos outros. E é difícil para caramba. Porque depois de um tempo a gente se acostuma com o que é e com o que pensa, mas é aí que já tá na hora de mudar de novo, de abrir mais um pouco a cabecinha e deixar entrar coisas novas. Sempre digo que o ser humano é um ser de hábitos e que tende a se acomodar, que não gosta de experimentar insegurança mesmo no campo das ideias. E se olharmos bem para a história veremos que demos saltos graças à coragem de alguns, pois que a massa sempre vai é arrastada como na música do Lulu "com passos de formiga e sem vontade" .
E é isto: incomodar gera reflexão. Isto é, se a pessoa permitir, se ela analisar a sua própria reação de raiva, de medo, etc e tentar descobrir porque vem à tona estes sentimentos. Quando algo nos incomoda é um sinal de alerta para o pó que deixamos assentar na nossa casa interior. E não podemos nos esquecer que toda casa tem teto de vidro, justamente para podermos  reconhecer nossa fragilidade na fragilidade dos outros.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Menino de verdade


E aqui em casa o filme da vez, isto é aquele repetido ad eternum, é o Pinóquio. Ao menos demos um tempo nas músicas em francês.

Se Maomé não vai à montanha...

A montanha fica paradinha esperando Maomé. E é assim, a montanha não vai a lugar algum. Quer dizer, algum lugar atrás de Maomé, foi mais ou menos isto que disse a minha vó. Estou de braços abertos esperando ela e mais alguns familiares que queiram nos visitar, mas ir ao Brasil tão cedo, não quero. Não tenho paciência para ficar na casa de ninguém, pelo contrário, dou tanto valor a este cantinho que é nosso que nem me passa pela cabeça. Acho que as coisas que passamos ainda estão tão vivas na pele, tantos sapos engolidos, tantas desavenças, que pela primeira vez na vida e quem me conhece sabe que isto é verdade, não tenho a mínima vontade de ir ao Brasil. Não fechei a porta, apenas não estou a fim de abri-la tão cedo, é só. Maomé tem de parar de preguiça e  ir mesmo até a montanha.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Os tipos de maternidade

Tenho certeza de que podem me apontar tantos, mas tantos defeitos neste mundo (chata, egoísta, controladora, ansiosa...filha única: guess what?), mas nunca terão razão em me chamar de hipócrita. Ah isto eu sei que não sou. Aliás, este tem sido quase o meu baluarte para o autoconhecimento: esmiuçar e admitir coisas não tão agradáveis para eu mesma, bem-vindos ao meu mundo! Então o post que mais bafafá deu é o "odeio ser mãe" e já expliquei algumas vezes o porquê sinto-me assim, mas tenho ainda algumas considerações por fazer. Já que as pessoas acham-se no direito de cagar regras no que eu devo sentir, eu sinto-me com a liberdade de falar sobre a maternidade alheia, porque não?
Em primeiro lugar, claro que não somos todas iguais, mas o que parece um ponto inquestionável é o de que apesar de sermos diferentes e levarmos vidas igualmente diferentes, temos de sentir o mesmo. Um amor-maior-que-o-mundo, incondicional e avassalador, um amor que faz com que não pensem mais em si em primeiro lugar e dediquem toda a existência para o(s) seu (s) filho(s).  Eu acho bom quando este amor chega, e não me importa se ele vem como em forma de plantinha interior (não é assim que dizem que cresce a cada dia?) ou como raspadinha ache três corações e ganhe o seu amor incondicional aqui. Mas é difícil explicar quando ele não chega, é difícil porque ao contrário de parir um filho, não se pode parir um amor. E isto se torna patético de dizer, mas ser uma orgulhosa portadora deste amor materno incondicional não a faz melhor ser humano, não a faz mais tolerante (e é por isto que há moderação de comentários aqui). Assim como o contrário também é verdadeiro, uma pessoa que não consegue inserir-se neste dogma maternal, não é um monstro, bicho papão, comedor de sonhos de criancinhas, e pode inclusive, olha só, ser uma boa pessoa!
Sempre desconfio de pessoas que propagam a todos os cantos como é bom ter filhos, que isto é a melhor coisa que poderia acontecer com uma mulher e digo isto porque? Porque geralmente esta mãe é uma mãe fim-de-semana, é uma mãe três-horas-dia, é uma mãe que muitas vezes "aluga" o seu filho para creches, babás, avós, etc. Eu não estou dizendo que isto seja péssimo à partida, porque tempo para nós é uma coisa que todas precisamos, mas o que me refiro é  terem a audácia do discurso de mãe do ano com quem abdica quase 100% do seu tempo para o filho. A minha vida é dedicada, não voluntariamente, ao Fabian. Não temos quase nenhuma vida de casal a menos que se conte o intervalo (pequeno, diga-se de passagem) entre "ele dormiu!" até nós mesmos irmos dormir. Não há avós, não há amigos, não há família nenhuma que fique com ele...somos apenas nós dois. Sempre. Como os franceses gostam de dizer: 7 sur 7 jours. E isto cansa. As crianças moem o juízo, sugam as energias e a vida muitas vezes fica um inferno. 
Vou ser mazinha agora, mas este amor incondicional me parece tão ligado à condições que chega a roçar a hipocrisia. Porque na época que pude ter algum tempo para mim, cheguei  a aceitar minha nova condição como mãe-prisioneira, mas só a partir do momento em que consegui um regime aberto. Ou seja, é muito fácil amar tendo escapadinhas a dois a cada mês, ou poder deixar uma vez por semana ou mais o filho com os avós para um jantar, um cinema, ou simplesmente para ficar no sofá a ver séries sem ser interrompidos 741112222 de vezes. É fácil ser mãe podendo dividir o tempo entre a família alargada que aliás é o que acontece em muitas culturas, nas quais todos tem sua parcela de responsabilidade por aquela criança. Além de fácil é bom se valer do apoio de terceiros mesmo que tenhamos que pagar, e está tão corriqueiro, que uma ex colega do meu marido, o filho não tinha nem nascido e já estava procurando babá para passar a noite com ele. E ninguém disse " não acredito, que tipo de mãe é esta?". Pergunto-me se estas mães tivessem todo o seu tempo ocupado com o rebento, tendo por consequência, zero para ela, será que não iam repensar estes julgamentos e inclusive este adjetivo por trás do seu amor? Será que existe vida depois da maternidade? É porque é a isto que muitas vezes resume-se esta falta de empatia para com esta filosofia de vida.
Para além disto, irrito-me com quem vem soltar "mas na hora de fazer foi bom", " se tivesse fechado as pernas", "se tivesse usado camisinha", etc. Porque não se trata muitas vezes de surpresa, muitas tiveram filhos planejados e mesmo assim, adivinhem? O amor não chegou. E depois vem aqueles boçais "na minha opinião só deveria ter filho quem está preparado". Ió ió  (onomatopeia para burro) para você. Mas e como alguém pode estar preparado para isto além de sei lá, ter uma família estruturada na medida do possível, de ter emprego e situação financeira adequada? Existe algum simulador para futuros pais que eu desconheça? Alguém larga um bebê aqui em casa para ficar um, dois , três meses, digo, meses não, anos, e depois vem buscar para gente saber se é dessa que estamos "preparados"? Não há preparação possível, não há absolutamente nada que nos deixe a par do que é ser mãe e para umas (muitas) isto significa entregar sua liberdade inteirinha sem prazo de validade. E depois, depois vem estas mães de fim-de-semana dizer o que devemos sentir, como somos cruéis e malvadas porque ocupamos tempo com os nossos filhos enquanto estão em um feriado em Paris, em um cruzeiro em Miami ou em um salão fazendo aquelas unhas de gel pavorosas. Amor incondicional é uma ova. Só acredito da boca de quem eu sei que está lá 7 sur 7 jours, fazendo das tripas e do coração paciência. Vai ver isto até é amor.

Brincar de fazendinha

Uma das coisas que mais me chamou atenção logo que cheguei aqui foi exatamente a falta. Olha-se para todos os lados e ela não existe, não há miséria, não há pobreza. E eu me pergunto, mas nem queira comparar o sul do Brasil (que considerando o país nem é dos piores) com a França né? Aí em um dia que andava de ônibus avistei o que parecia para mim um acampamento um tanto quanto organizado, rodeado de casinhas de madeira minúsculas. Prontamente pensei "aháá" e não é que a pobreza estava todinha ali, concentrada em campos cercados por ferro verde?! Apertei os olhos: e ainda por cima plantam o que comem? Será alguma comunidade hippie no maior estilo sociedade alternativa do Raul? Aquela dúvida ficou fazendo círculos na minha cabeça até um casal de amigos portugueses nos levar para conhecer sua plantação de cebolas. Como assim, no apartamento? A minha ingenuidade não tem fim mesmo...
A prefeitura  cede para qualquer habitante de Schiltigheim que queria alugar um espaço de mais ou menos 40 metros quadrados, o que eles chamam de jardins familiaux. A finalidade é mesmo  o plantio, portanto as casinhas tem medidas máximas e é proibido ter piscina. Mas muita gente que não ruma para o litoral no verão, principalmente idosa, vai lá passar o dia ou mesmo a noite naquelas minúsculas casas. Há água encanada e todas as elas tem um banheirinho (é tudo inho mesmo), há um estacionamento exclusivo para os locatários e cada um recebe uma chave com um código único, caso haja qualquer problema sabe-se quem entrou ou saiu naquele momento. Mas como nada é perfeito, o nosso amigo nos disse que não se deixa nada de valor nas casas por que uns adolescentes vez por outra arrombam com pé de cabra as cabanas. E eu imaginei quem é que põe alguma coisa de valor ali entre adubos e quinquilharias que já não querem em casa, como uma cadeira bamba ou um bibelô de navio com o mastro quebrado? Ele depois de esperar pelos meus olhos que corriam aquele monte de coisas semi abandonadas, disse: eles vem para roubar cerveja, vinho ou uísque. E só me veio a cabeça o quanto meu vô ia gostar de um pedaço de campo no meio de Porto Alegre, de plantar e depois sentar para tomar sua cerveja gelada, isto se uns filhos da puta* não tivessem-na roubado de madrugada.



*o meu vô era um poço de educação e eu herdei-lhe o dom.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Crianças francesas não fazem manha*

Mas também não fazem mais nada. Juro, demorei todo este tempo para falar sobre isto porque estava digerindo e observando melhor antes de me pronunciar sobre o assunto. Meu filho é a única criança que vem para casa com os joelhos sujos. Só em um mês ele conseguiu furar três calças de moletom e uma jeans (!!), a qual tive de atempadamente colar o "Homem Anhanha" antes que ela se desfizesse. Também é o único que pelos vistos não sabe usar o "pananapo" e eu só fico sabendo o que comeu de lanche pela cor das mangas: se estão cor-de-rosa, iogurte de morango, se estão marrons, chocolate de caixinha. Quando levava ele para o turno da tarde, depois do almoço, notava a roupa imaculada das outras crianças e de alguns memorizei para saber que não haviam-na trocado. 
Por outro lado, é verdade que para se ver uma criança fazendo birra tem de se estar muito atento e eu neste tempo todo que moro aqui, só vi uma vez e ainda assim foi tão fraquinha que quase nem notei. Quando meu filho chora na rua (e isto acontece frequentemente) parece uma coisa surreal: pessoas param para olhar, viram o pescoço e eu me sinto a pior criminosa apenas por tentar educá-lo dizendo que não pode fazer tudo que quer. 
Uma coisa que me chamou bastante atenção logo que cheguei, foi a quantidade de crianças pequenas com três anos, talvez quatro, a andarem de bicicleta sem rodinhas (e eu fiquei pensando que a primeira vez que consegui este feito era uma barbada de oito anos). Mas não é só: elas andam so-zi-nhas e muitas vezes na rua, já que a ciclovia separada fisicamente dos carros não existe em todos os lugares. Os adultos vão na frente e não ficam cuidando a cada cinco segundos se elas ainda os acompanham, eles simplesmente confiam que elas o estão fazendo. 
Faz sentido que o sistema de se débrouiller (se desenrascar) seja aplicado cada vez mais no país da comunidade européia com maior índice de natalidade. Uma mãe aqui tem uma média de três filhos com pouquíssima diferença de idade, assim, espera-se que os mais velhos consigam gerir suas necessidades sem grande intervenção dos adultos. Se por este prisma parece um alívio a quem está acostumado com uma criança que exige atenção em todo o tempo que está acordada, por outro a impressão que dá, é que tanta auto-suficiência cria pequenos robôs. Por serem coibidos de expressar sentimentos como raiva, revolta, ou até alegria efusiva, as crianças francesas tem um olhar inexpressivo. Parecem estar sempre temendo um olhar reprovador justamente por serem...crianças. 
É muito interessante problematizar a educação que damos para os nossos ao comparar com outras culturas. Há algumas coisas que gosto, como por exemplo, eles deixarem os seus filhos "respirar", terem suas experiências e claro, por vezes caírem e se machucarem. Porém ainda continuo achando que o melhor seria um meio termo entre nós: nem tanto "te vira" e nem tanto "deixa que eu faço". Mas por via das dúvidas vou já preparar as joelheiras, que auto-colantes de desenhos animados estão pela hora da morte.


*Livro da autora Pamela Druckerman

terça-feira, 15 de abril de 2014

Terceira idade

O maior sonho do marido é se aposentar. E fazer o que, pergunto? Ora, nada. Fazer nada é muito tranquilizador para quem trabalhou trinta anos com os olhos em uma tela de computador (e ainda tem mais pela frente). Ele estica os braços e massageia os dedos com tendinite crônica. Suspira: porque bem que o Euromilhões podia ter saído esta semana ao invés de ter se limitado a ficar um número antes ou um número depois dos que ele jogou. 
Ontem à tarde tocaram a campainha e quando abri a porta dois idosos gorduchitos estavam me olhando. Entregaram-me um convite e falaram e falaram e eu não entendi metade, mas agradeci na mesma. Quando eles foram embora, abri o convite que até então imaginei que se tratava de uma festa da Mairie (prefeitura), mas era de um culto lá para os lados de Hoenheim. Não importa no que se metam, mas os velhinhos daqui gostam mesmo é de estarem ativos. É muito comum se engajarem em campanhas políticas e saírem  a distribuir panfletos. Mês passado, estavam na escola do Fabian fazendo uma pesquisa sobre como os pais gostariam que fossem administradas as atividades físicas e pedagógicas dos filhos. Com base nas respostas os candidatos iriam elaborar a campanha eleitoral.
Os professores do meu curso de francês são todos aposentados voluntários e que na maioria das vezes envolvem-se em outros cursos para estrangeiros, como informática  e o ensino do alfabeto francês voltado para os árabes e chineses principalmente. A minha antiga professora, ainda completa sua agenda fazendo teatro e diz sem pestanejar que detesta estar parada. 
Os vizinhos da casa ao lado, os quais consigo "espiar" pela janela da cozinha, também são outro exemplo de que eu pareço muito mais terceira idade do que os seus cabelos branquinhos. Sempre arrumados, com andar jovial, levantam-se cedo e não param em casa. Seguido os vejo a passear nas ruas nem que seja para esticar as pernas. Ah e também vão à feira a pé, e voltam carregados de caixas de madeira e sacolas ecológicas. Fora que ver gente que beira os 90 anos, talvez até mais,  magros a pedalar na sua bicicleta, é um soco no estômago do meu sedentarismo convicto. Se aposentar aqui, significa apenas deixar de trabalhar, não é de maneira nenhuma sinônimo de pantufas, perna pro ar e programas de auditório. 

Silvio Santos é que não ia achar muita graça.

Beijinho no ombro

É viral. De uma hora para outra a timeline encheu-se de fotos com pessoas beijando o ombro para espantar o recalque. Aí eu pergunto: de quem? Acho quase patológico esta necessidade de sentir-se invejado, sim, porque a inveja é uma coisa que ao mesmo tempo que é rechaçada é um objetivo de vida, pois ninguém inveja gente fracassada. Vou largar meu politicamente correto lá no canto, tá bem? Pronto. 
Todo mundo tem inveja. Em algum momento, por alguma coisa, é inevitável, é humano e por si mesmo, compreensível. Eu tenho inveja, morro, morro, morro de inveja de quem com dois meses de pós gravidez tem uma barriga lisinha, sem aquela gelatina que se transformou a minha. Tenho inveja de quem vai pro Caribe. Caramba, é meu sonho, aquelas cabanas à beira-mar, mergulhar de snorkel, entrar no jacuzzi e ficar olhando o por-do-sol. Sempre que vejo uma foto de alguém se casando, a noiva de branco, o noivo com um sorriso de uma orelha a outra, eu tenho inveja. Gente, não existe inveja branca, a menos que se faça um degradê de azia que vai do desde "queria levemente ter/ser isto" a o "desgraçado/a quero que você morra!" Não acredito nisto, inveja, é inveja. Inveja não tem cor. 
O problema está em ultimamente termos vivido em uma cultura da ostentação. Aí o cara coloca uma piscina de plástico no quintal e acha que está ostentando. Quem vai para a praia, mesmo que seja no nosso mar chocolatão do sul, manda beijinho no ombro para quem fica torrando na cidade, quem tem um Galaxy ou um Iphone, manda recado para quem tem um nokia fudido. A sério que entendo esta revanche, que nada mais é do que gente que está ascendendo socialmente porque gente rica mesmo não precisa se auto afirmar a todo tempo. Isto vai cair na mesma polêmica do rei do camarote: na verdade todos nós ostentamos do ponto de vista de quem tem menos que nós. Mas não pensamos nestes e sim em acusar aquele que tem a mais de ostentação e de nos criar este sentimento tão amargo que é a inveja.  Portanto, cada vez que vejo alguém mandando beijinho no ombro acho uma puta de uma hipocrisia, pois parte do objetivo não é espantá-lo e sim despertar o recalque nos outros. Embora tenha casos que só me façam rir (como o da piscininha de 1000 litros), imagino que seja para quem o faz uma fonte de auto-estima e sucesso. Ser invejado é estar  na moda.

Fabionices

Olhando pela janela:
- Pai, não dá pra sair, tá muito fio! O vento tá misturando a árve!

            *           *          *

- Fabian bota logo estes tênis!! - Já perdendo a paciência.
- Tá, mãe ti acalmeja. Já buti.


Oi?

domingo, 13 de abril de 2014

Just turn around now, cause you're not welcome anymore

Eu tinha uma amiga que começava a caminhar em sua velha esteira mecânica ao som de Gloria Gaynor, I will survive. Costumava rir dela, pois para mim naquela época exercício físico era quase um vício e não achava aquilo minimamente estressante, muito menos um caso de vida ou morte. Mas como sempre, a vida tem um certo dom para fazer-nos engolir nossas verdades uma a uma, e hoje a fatídica música faz parte do meu repertório no ipod. Bem sei que a letra fala sobre uma mulher indignada perante a volta do outrora amante, e dá cá uma raiva deste sujeito mesmo sem conhecê-lo! Ah, a raiva também é um excelente combustível para enfrentar o treino de cárdio tanto quanto a depressão o é para a escrita. Estando eu lá em movimentos frenéticos, ou correndo ou pedalando, trato de por um rosto neste meu ódio quiçá gratuito. Tenho imensa raiva de ter engordado de novo, de ter novamente me abandonado e ter travado uma disputa sobre quem engolia mais: eu ou o medo. O problema é que nesta luta ele sempre ganha, mas quem fica com os quilos sou eu. Não há como voltar a balança para trás, só me resta pegar humildemente a toalhinha e fazer aquele trabalho de formiga, tomando cuidado para não olhar muito para o espelho. O cara da música da Glória pode ter sido o maior cafajeste, enchendo-a de bombons e falinha mansa, deixando-a na fossa depois, mas que ele tá muito parecido com vilão da minha história, isto tá!

Para matar a saudade:

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O mico nosso de cada dia

Pensa em uma pessoa cansada. Não, tipo bem cansada, com as pernas latejando depois de um treino de uma hora e meia. Cheguei trazendo shampoo, creme e gel de banho. Ufa! A água quente nas costas mesmo que por 17 segundos (me dei ao trabalho de contar) retirando o suor do corpo. Fechei os olhos por pouquíssimo tempo e de repente ouço tocar o alarme do prédio. Insistente e monótono como o bonjour do motorista do ônibus. Ai meu Deus, o que que eu faço? Saio correndo enrolada na toalha porta a fora? E se for um teste? A espuma escorria dos meus cabelos. E se neste momento tá rolando o maior fogaréu no saguão? Olhei para o canto do vestiário que conseguia avistar: nem viva alminha. E agora José? Com o creme, o shampoo e o gel na mão pronta para correr (e provavelmente levar um tombo) escuto a voz vinda das caixas de som. Mesdames e messieurs o que? Só podem estar brincando comigo, tenho a impressão que o sujeito colocou uma batata na boca de propósito antes de falar! Isto é uma emergência ou n'est pas uma emergência? Ele disse "permaneçam calmos" ou "boa sorte e que let the game begin"? Do mesmo jeito que a voz apareceu, sumiu do nada, sem explicação nenhuma. E o alarme continuava. Imaginei logicamente que se houvesse real urgência de evacuar a academia, alguma criatura havia de checar se alguém tinha ficado para trás...tomando banho...pensando se devia correr ou passar o segundo creme nas pernas.
Foi um alívio entrar no vestiário e ver ele como de hábito, com gente se preparando para sua sessão básica de tortura. Vesti-me e saí. O alarme ainda estava tocando. Nunca vou esquecer como se sentem aquelas vovós que não entendem/escutam o que a gente fala. Nota mental: na dúvida, haja naturalmente (ainda bem que não saí correndo com a toalha)!

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Bonitinha indelicada

Há alguma relação entre o nível de macheza da criatura e o ângulo das pernas no transporte público? 



E o francês?

O Fabian tem uma fixação por um dos colegas da escola. A primeira coisa que diz quando me vê é: posso corrê com o Alpharren? Se chego um nano segundo atrasada e dá o azar do menino sair antes dele é uma choradeira. Várias vezes lhe aviso que não nasceram grudados, não é porque um faz que o outro tem que fazer, mas não adianta. Saem correndo e rindo em uma simbiose de clones, pulando a cerca do jardim, apertando nas campainhas e deixando o zelador do prédio alto tão cinzento como ele, a bradar. Durante a tarde só quer saber se o amigo vai dormir na escola também e lá tenho de ouvir a cada minuto se eu tinha mesmo mesmo mesmo a certeza de que o Alpharren ia. Hoje esteve duas horas a brincar com ele até o pai chegar do trabalho e atravessar a praça. Engraçado foi ver sair da boca do pequeno turco "vamu corrê", assim como Hafize sorria quando o Fabian soltava umas frases em sua língua. Mas e o francês? Vai indo, obrigada. Mas tenho aqui a impressão de  que ele ainda aprende turco primeiro.

Ainda bem


Não, não é o sorvete de arroz doce da ali na Rua da Prata, mas é o de morango na Rue de Austerlitz que desce pastoso e fofo como se quer o bom gelato. Não é o rio Guaíba, tampouco o Tejo, mas é o Ill serpenteando pelos contornos da cidade tal como um amante acaricia o corpo de sua amada. Dentro das pequenas janelas de madeira a cidade espia os habitantes, escuta a conversa jogada nos bancos, fotografa em câmera lenta os ciclistas e seus mil e um code dress que vão desde o praiano ao sport chic com salto agulha. 
Ainda bem que existe outro dia, outros sabores e outra vida a esperar por nós ao virar da esquina. Ainda bem que podemos virar a página e suspirar de alívio que o que temos agora compensa o que deixamos para trás. 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

It's been a long cold lonely winter

O vento trouxe com ele o cheiro da cevada*, um cheiro morno e doce que não combinada nada com esta ventania desvairada. Faz tanto tempo que não venta aqui que já tinha me esquecido de como os meus cabelos conseguem ganhar vida e quase me estrangulam enquanto ando. Desde Erico que me  é impossível não relacionar o tempo com o vento. O vento de certa forma é como a materialização do tempo, mas isto não quer dizer que ele passe mais rápido. É como se ele açoitasse a pele só para dizer "estou aqui", "olha para mim, eu passo, vês?". Esta semana além de vento tinha pólen voando e pousando na roupa, a primeira coisa que pensei era que ia morrer espirrando, mas ao que parece não sou alérgica ao pólen alsaciano.
Meu corpo ainda está a acostumar-se com o tempo, se misturando com a paisagem. Depois do inverno me acumular uma dezena de quilos no lombo, hoje a primavera me encontra poros a dentro, florescendo a minha vontade de sair do casulo que transformei a minha casa. Está na hora de bater as asas, de me agarrar a fundo e recuperar-me destes longos meses de frio. Só agora consigo entender o entusiasmo dos Beatles quando cantavam "It feels like years since it's been here...here comes the sun and I say, it's all right".




*Ai ai as delícias de morar perto de uma cervejaria (só que não).

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Adão

A primeira vez que me dei conta dele foi quando bateram violentamente em uma das janelas da sala. Ou em todas porque agora já não lembro mais. A lateral da casa dá para a calçada e temos de tomar muito cuidado para não assolapar alguém que esteja passando quando abrimos ou fechamos as janelas. Pensamos que era por isto, alguma delas tinha escapado do trinco e estava abanando. O marido foi espiar e voltou dizendo que tinha sido um menino que o fizera e a mãe tinha se desculpado. Nas outras vezes que aconteceu  ignoramos completamente pois sabíamos que era ele. 
Depois o vi milhares de vezes a chegar com sua mãe ora no carrinho, ora pela mão arrastando-a. Mas foi só semana passada que notei que a senhora além dos olhos muito azuis era vesga, não que isto a fizesse pior que os outros, mas me culpei por não o ter notado antes, logo eu que gosto de me achar boa observadora. 
Descobri que ele era colega do meu filho, mas sempre fica acompanhado pela mãe, faz todas as atividades sempre perto dela, porque ele tende a querer fugir e não tem muita coordenação motora. Adão tem síndrome de down e o Fabian nunca tinha mencionado a sua existência. Simplesmente me disse estes dias que o Adão batia nos amigos. E eu tentei lhe dizer que o Adão é diferente, não queria que ele tivesse a impressão de que o menino era mau, mas que ele controlava pouco os seus movimentos muito agitados. O Fabian não quis saber da minha explicação, para ele o colega era igual a qualquer outro, era apenas um dos que "batem" nos amigos tal como ele o faz (às vezes)...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Porões

Eu não sei porque, mas sempre que podem meus olhos escorregam para aqueles buracos escuros. Pode-se dizer que tenho certa atração pelo perigo, como quando vejo um filme já sabendo que vou morrer de medo até adormecer. E lá alguém já morreu de medo? Eu não sei. Talvez o medo seja uma doença que demora muitos anos para matar até que ele nos faz acreditar que se morra de velhice. Não, eu acho que foi de muito medo acumulado nas juntas e das metástases no pensamento. Mas como ia dizendo, não há o que me faça evitar olhar para eles. Para todos os porões que passo, reservo um olhar de soslaio como se fosse encontrar o monstro mais feio. Às tantas começo a imaginar que quem espia são eles, os pequenos orifícios negros em todas as casas e prédios da cidade. Máquinas bicicletas, tralhas ou simplesmente o vácuo do cimento úmido a exalar para a luz. 

Fabionices



É preciso atravessar dois semáforos sempre que vou levar ou buscar o Fabian na escola. Ontem quando íamos voltando para casa, reparei que ao meu lado tinha um homem cego esperando também que o sinal abrisse. Titubeei :  ai, será que ajudo? Eu sei que  eles tem o sistema de se débrouiller e às vezes temos que guardar a gentileza no bolso e respeitar como funcionam as coisas aqui. Além do mais o sinal é luminoso e sonoro. 
O homem atravessou normalmente quando ouviu o barulho, passou pela calçada em direção ao segundo semáforo. Apalpava o mundo com a sua bengala de metal. Foi andando, avançando, e não  parou quando passou pelas pequenas bolas de concreto que existem para avisá-los de que ali começa o asfalto. Segurei levemente no seu ombro, impedindo-o de continuar. Disse-lhe que não estava verde ainda e ele agradeceu. Depois quando finalmente abriu o sinal para nós, vi que ele caminhava na diagonal, passando por uma pequena ilha, se distanciando cada vez mais da faixa de pedestres. Lá sai eu puxando o guri pela mão para catar o cego e trazê-lo de volta à segurança. Depois de nos despedirmos, o Fabian que tinha permanecido muito quieto até ali, ergueu a cabeça emoldurada pela franja:
- Mãe, poque o titio tem aquele negócio?
- Aquilo é uma bengala. Os olhos do titio estão estragados, por isto ele precisa de uma para poder "enxergar".
- Mais e poque ele não vai na dotôra pa arrumá os olhos?
- Porque nem tudo que estraga tem conserto, meu filho...  

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ninfomaníaca

O empoderamento pela mulher do seu próprio corpo, nu, semi nu ou vestido ainda gera ecos de indignação. Dá licença de tomar o que sempre foi nosso?

*Spoiler

Lars von Trier sambou na cara da sociedade ao abordar dois temas (ainda) tabus: sexo e prazer feminino, ah e claro na verdade uma extensão do último, o estado doentio da busca por este mesmo prazer. Joe conta sua história a um desconhecido que a encontrou jogada em um beco depois de uma surra. Um terço do filme se passa no quarto insosso de seu salvador. Na verdade achei muito interessante o diálogo entre aqueles dois improváveis confidentes: um sessentão que não havia jamais feito sexo e uma mulher no fim dos trinta com um currículo incontável de amantes.
Esta semana rolou na net um protesto chamado "eu não mereço ser estuprada" como forma de reação aos vergonhosos 65% de pessoas que responderam na pesquisa do IPEA que uma mulher com roupas curtas está pedindo para ser abusada. Vou fazer um mea culpa porque eu já fiz parte desta maioria. Eu já olhei com desconfiança quando alguém me contava ou quando lia uma notícia sobre estupro e a primeira coisa que pensava era: ah mas ela tava de saia, não? Como se isto nos colocasse um neon de "foda-me" e o cara ficasse impedido de se conter. Tá mas e o que que tem a ver o cu com as calças (ou a falta delas)?
Ninfomaníaca beira o pornô, mas eu digo beira porque a história é tão densa e cheia de mensagens sutis que somente um adolescente iria enxergar como puro sexo. Joe é a própria luxúria negada a toda mulher direita e mãe de família. Joe fez exatamente aquilo que se espera dos homens, mas ao contrário de receber aprovação da sociedade, o seu comportamento é considerado como doença. A personagem carrega em doses iguais tanto a culpa como o desejo, tanto a revolta como o arrependimento, tanto o prazer como a dor. Através de alguém que busca compreendê-la, vai abrindo-se  dividida em capítulos, sendo encorajada por analogias que ligam o sexo a algo tão banal como o papel de um anzol na pescaria. Ela confia, ele lhe dá motivos para tal, e quando já está completamente entregue ao cansaço e absolvida de seus desvios, eis que seu protetor entra sorrateiramente pela cama. Trazia o membro semi duro pronto para estuprá-la: mas qual era o problema, se ela já tinha transado com tantos?
O corpo feminino ainda é visto como algo material, algo que pode ser vendido, comprado, invadido. O corpo da mulher ainda é visto como público. As pessoas podem julgar, podem fazer cantadas, passar a mão, encoxar no metrô. As pessoas não, os homens. E apesar de termos no Brasil uma relação aberta com a sexualidade, digamos que olhando melhor, esta parece um tanto bizarra. Porque corpo feminino está em tudo: no clip do skank, na propaganda de cerveja, na revista de moda... mas apesar disto, ele ainda é  fetichizado. O corpo da mulher é de todos, menos dela mesma. Pensamentos de que a mulher pelas roupas que veste "atrai" o abuso sexual transferindo toda a culpa para a vítima, de que  seu comportamento na cama legitima que seja chamada de puta, são reflexos claros do quão disfuncional é a nossa sociedade (e nisto incluímos não só homens, mas mulheres com discurso machista que o reproduzem sem tê-lo consciência). A maldição de Joe nada mais é do que a inexatidão em enquadrá-la entre uma figura da clássica vagabunda ou a da doente viciada em sexo, pela falta de pênis, porque se o tivesse seria a sua busca  por prazer considerada ninfomania?