segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Das coisas que não esquecemos

Poucas coisas na vida pode-se dizer que são marcantes para toda a existência. Há algumas que são momentaneamente boas ou ruins, mas que com o passar dos anos vão se desvanecendo entre outras lembranças apagadas que com o tempo já não sabemos se realmente lembramos daquilo ou se mais que a metade são invenções para preencher as lacunas de nossa história. Todo mundo diz que o nascimento de um filho é das coisas mais preciosas para uma mãe, mas confesso que pouco me recordo do momento e do que senti. Eu tento, mas não chego lá. Tenho fiapos soltos, um pé, um choro, mas não consigo reconstruir isto e reviver. 
Quando levantei cedo em uma manhã de domingo, estava de mau humor, mas a minha mãe dissera que ia encontrar uns amigos. Cuidadosamente havia escolhido a minha roupa: um conjunto azul de calça fuzô de que particularmente detestava. Lembro-me de andar de ônibus, de sentir os pés balançar   acima do piso de lata. Quando chegamos ao parque que já conhecia, minha mãe agarrava-me a mão. Estava um dia lindo de sol sem nuvens e sem vento, e eu procurava ansiosa pelos amigos dela, estranhando o fato de que nunca vi minha mãe com amigos nenhuns. Atravessamos a rua e lá estava um homem de bolsa a tiracolo. A minha mãe o conhecia, aproximou-se dele e me disse: este é o teu pai. Fiquei completamente paralisada, sem saber o que fazer ou dizer. Ela simplesmente me largou com aquele estranho por alguns minutos, talvez, mas pareciam horas e o abismo entre nós pareciam anos, os anos de ausência dele em minha vida. Ele foi educado e ofereceu-me pipocas e algodão doce, coisas que qualquer criança não conseguiria resistir e que se não fosse vindo dele, eu talvez aceitasse de bom grado. Depois de mostrar-me na máquina filmadora o que supostamente ele chamou de meu irmão, ele deixou-me novamente com minha mãe. Ela convidou-o para almoçar, mas ele não aceitou. E educadamente retirou-se de minha vida. Eu achei que poderia finalmente ter o seu rosto em um papel denominado pai. Mas seu rosto também recusara-se a ficar. Por muito tempo senti aquele abandono, aquela rejeição pelo simples fato de eu existir como sendo parte de mim. O que tinha de tão errado que fizesse ele não me amar? Um adulto pode entender coisas muito difíceis como a perda de alguém. Pode lidar com isto de muitas formas, pode escolher fazer terapia, correr, chorar, gritar com seus subordinados no trabalho. Mas uma criança não. Uma criança é um ser em formação que está a recém aprendendo como lidar com seus sentimentos, aprendendo que o mundo não é a extensão dela mesma. Mas uma criança é frágil demais para suportar as escolhas dos outros, a sua incompetência emocional. Porque uma criança só quer uma coisa: ser amada. E não, agora que sou mãe sei que apesar de simples, este desejo não é fácil. 
Por muitos anos meu pai foi odiado silenciosamente, porém apesar de não falar no assunto e de dizer-me bem resolvida, a nossa origem é das coisas mais marcantes da existência. E eu odiava o meu pai. Odiava o abandono. Odiava ter conhecido ele não porque o mesmo quisesse, como imaginei por muito tempo, mas sim porque minha mãe havia insistido o bastante para que aquele encontro fosse possível. A ideia de que eu sou mais eu e ele é que está perdendo de conviver comigo bastou por um período. Mas para aceitar isto lá no fundo são outros quinhentos.
Uma coisa é certa. Quando se é pai conseguimos enxergar com outro olhar. Vemos além da mágoa e reconhecemos de que nossos pais não são os depositários de tudo que aconteceu de bom Pu ruim conosco. Eles foram o molde, mas nós somos agora nova forma e constatamos que são falíveis assim como nós o somos neste momento. Meu pai foi uma criança birrenta que não quis assumir responsabilidades, que lutou para que eu não nascesse. Se disser que o perdoo estarei mentindo. Mas o entendo, hoje o entendo apesar de toda dor que ele sequer imagina que plantou em mim. No entanto a lacuna que ele deixou em minha vida nada o preencheu, nem meu avô, nem meu padrinho, nem meu padrasto. Por ironia do destino , quem me ajudou muito a superar isto foi meu marido. Ele foi o pai que escolhi. E por consequência, o pai que escolhi para o meu filho.

3 comentários:

  1. olá, agora vi que estás com o teu blog renovado, mais "fresco" de aparência e profundo de conteúdo!
    gosto de te ler... consegues pegar nas palavras e "assumir" as tuas narrativas como analise e terapia. bjos
    Carla

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    1. Muito obrigada Carla! Fico feliz que gostes de me visitar, és sempre bem vinda!
      Beijinhos

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  2. deve ter sido dificil para ti...ha coisas k nao esquecemos nunca!

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