quinta-feira, 22 de maio de 2014

Sob o véu

Eu contei. Era a única da fileira que não usava nenhum tipo de véu para esconder os cabelos. Todas as mulheres a minha volta estavam com lenços, turbantes e inclusive quatro delas com o traje completo do "não me olhem". Duas moças tinham uma quase burca (que no entanto é a alternativa permitida destes tempos de democracia francesa): o rosto mostrava apenas o necessário, dois olhos, nariz e boca. O queixo e metade da testa se encontravam tapados. Eu confesso, senti-me desconfortável no meu mini vestido e sandálias baixas e creio que o mal estar é recíproco. Como podem duas realidades tão opostas colidirem em olhares de segundos e ao mesmo tempo deixar-nos indiferentes? Ainda não consigo achar natural, quem sabe um dia mude de ideia, mas por ora acho no mínimo desconfortável ver mulheres tapadas dos cabelos aos dedos dos pés. No entanto, a religião muçulmana tem várias nuances proibitivas em relação à mulher, mas já chegaremos lá.
Na primeira vez que falei com Azá, a jovem que lembra-me muito a Liv Tyler quando mais nova, foi em uma aula em que eu estava especialmente de bom humor. Não recordo bem porque assunto começamos, mas conversa vai, conversa vem, acabei por esbarrar inocente em suas saias escuras pelos joelhos. Perguntei se com a chegada do calor ela iria aderir às minis, já que corpo esguio não lhe falta, e ela me disse com um sorriso nos lábios grossos e vermelhos, que não. Não podia. Então porque? A resposta que se seguiu servia para as demais perguntas que fiz: sou muçulmana e meu irmão não deixa. Morava ela, a mãe, a irmã e um irmão mais velho de 22 anos e ele possuía nas mãos todo o seu livre arbítrio. Imagino que o seu e das demais familiares sob o mesmo teto. Só não usava o véu porque ainda era solteira.
Há na minha turma três turcas contando com a mãe do Alparen. Usam roupas ocidentais, calças, camisas e blusas, mas tem um jeito particular de esconder o cabelo. Rodam-no em uma espécie de pano comprido até ficar como aqueles turbantes de faquir. Um dia destes, perguntei a Hafize se ela frequentava as piscinas públicas no verão, pois não imagino o que de mais divertido possa se fazer em uma cidade sem praia, quente como o raio nos dois meses que temos de verão. Ela disse-me que leva os filhos lá, mas não entra, "c'est interdite pour moi". Fez movimentos vagos com seus braços longos ao redor do corpo para dizer que deveria continuar com a mesma roupa que vestia naquele instante. Fiquei sem saber o que dizer, se lamentava ou se concordava, nem sei, mas acho que balancei a cabeça afirmativamente como fazem aqueles médicos que fingem escutar os pacientes.
Obviamente é uma questão cultural a qual estas mulheres estão sendo influenciadas desde que nasceram, mas não pude deixar de sentir (friso) nestes dois casos, uma certa melancolia por não poder fazer o que se quer. E não é uma roupa, uns centímetros a mais de pele à mostra, os responsáveis por este sentimento, mas a impossibilidade de ser dona de seu corpo. Porque é preciso preservar-se de olhares masculinos para seu bem estar e mais: é preciso abster-se de provocar tais olhares para que o outro não seja levado em tentação. Por enquanto acho indissociável este estranhamento entre os meus cabelos soltos e roupas curtas e o turbante de Hafize, as saias nos joelhos de Azá. Na barreira do idioma, muitas vezes cheia de reticências, nossos sorrisos se cruzam em silêncio...fico a pensar que esta é por enquanto a melhor fonte de conexão entre nós.

2 comentários:

  1. As ocidentais tem apenas uma ilusao de que sao donas do proprio corpo, afinal, se uma mulher se veste com roupas curtissimas logo eh taxada de sem vergonha, garota de programa e ate dizem que ta pedindo pra ser estuprada. Sem falar na ditadura da magreza, da depilacao em dia. Um dia vi alguem dizer que a depilacao era a burca das ocidentais. Acho que as mulheres do mundo todo sao oprimidas de alguma forma.

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  2. Eu concordaria contigo se vivesse ainda no Brasil ou em Portugal, mas eu moro hoje na França e isto é beeeeeem diferente. Aqui não se tem esta relação dicotocômica roupa curta- puta, roupa comprida - mulher decente. Aqui eu sou respeitada, não ouço cantadas, ninguém me olha independente do que eu vista, saio à noite sozinha sem medo, portanto eu não tenho a ilusão, eu sou dona do meu corpo. E não quero dizer que são todas as mulheres que sentem-se mal por viverem assim, mas nestes dois casos dava para perceber claramente a frustração de tantas proibições.

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