quarta-feira, 26 de março de 2014

Mais um

De repente me vi como em um tubo no tempo, um tubo que me deu alguma vertigem, confesso, como aqueles elevadores que antes de chegarem em um determinado andar, sobem a bílis até a garganta. Na atmosfera respirava medo, terror. Pessoas gritavam, outras fugiam, escondendo-se como pudessem. O céu  da Alsácia estava nublado e escuro, não sei ao certo que horas eram porque fazia frio e os dias de inverno tem este dom de passar lentamente e nos transpor a um estado de torpor e alheamento. Mas eu vi ele destacado entre tantos soldados, cabelos loiros em um corte militar enquanto dava ordens a eles. Sorri de um modo estranho e o meu capitão não esboçou qualquer empatia por mim. Trazia no cenho o peso do mundo e a aceitação da morte iminente. Quando finalmente mergulhei em seus braços o contato com seu peito forte soube a pouco, não havia tempo, infelizmente na guerra nunca há tempo para o amor. Ele carregou-me pela mão e fomos em direção a uma capela, ninguém lhe negava um casamento às pressas. Depois de casados aos olhos de Deus, saímos em busca de algum lugar para consumá-lo, percorremos ruas fazendo muitas vezes a contra-mão dos que buscavam a salvação. Procuramos casas abandonadas e tivemos o cuidado de evitar as com cadáveres de gente que havia decidido que não daria a chance do destino decidir nada por elas. Entramos em uma casa onde ouvia-se a voz de um homem a falar ininterruptamente e até pensamos tratar-se de uma televisão (pois parecia pertencer a uma família abastada) ou mesmo de um rádio, mas ao abrir a porta nos deparamos com um velhote muito magro. E completamente louco. Já cansados, invadimos um hotel e o gerente disse que não iria cobrar-nos nada ao ver a farda dele, deixou-me que escolhesse o quarto que quisesse. E eu me lembro daquele cabelo loiro e sabia que ele era tu. Tinha os mesmos olhos rasgados que me levavam a ti, o olhar cansado e meio ausente de quem já havia encontrado a morte vezes demais. Não eras um monstro para mim, eras apenas o homem que eu amava e que reencontrava a cada esquina do destino. Lembro-me sim, e não sei como, já estávamos despidos da carne e ias para uma nova existência. Queria com todas as forças assistir ao processo de reencarnação, mas não me foi permitido. Orei. Fechei os olhos e pensei em todo o horror daquelas ruelas, dos gritos, do sangue e do nosso amor. Fechei os olhos e acordei sentindo ainda mais vivo este laço que nos une vida após vida, há muitos séculos atrás... Não sei quando fora a primeira vez, sei apenas que hoje cada vez que meus olhos batem nos teus, há sempre a faísca de um reencontro e um certo despeito por um ponto final.

3 comentários:

  1. Lindo e profundo!
    Embora silenciosa tenho continuado a visitar este cantinho e penso sempre que darias uma escritora de sucesso.
    Muitas felicidades.

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  2. Lindo e profundo!
    Embora silenciosa tenho continuado a visitar este cantinho e penso sempre que darias uma escritora de sucesso.
    Muitas felicidades.

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  3. Obrigada Mieke :)
    Eu não tenho escrito todos os dias porque tenho pensado um pouco mais, não estive muito à vontade quando aconteceu aquele incidente, acho que fiquei meio insegura com isto.
    beijinhos

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