quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Elisa (parte 1)


Andava com passos cuidadosos como se isto fizesse com que seus pés pequeninos deixassem de afundar no barro escuro, manchando os sapatos de sempre. A maioria das pessoas estava acostumada a não olhar para a sujeira das barras dos vestidos, das calças e sapatos dos homens. Fazia parte do cotidiano inclusive dos ricos a arrastarem seda e couro pelo mercado da vila. Sabia disto, mas ela não conseguia desviar o olhar do chão e esconder o desgosto de ver o trabalho que deu para lavar a roupa, estragado em  poucos minutos. Tão pensativa estava que não o viu com a armadura brilhante estacado à sua frente. Esbarraram-se. Embarraram-se (ainda mais). Elisa resmungou baixinho que um homem com armadura imaculada era sinal de que ainda não tinha enfrentado a guerra e não devia se orgulhar disto. Era o Campeão do rei, Stephane que apesar de tudo era o homem mais bonito da região. Alto, muito alto pelo menos para ela em seu metro e meio, cabelos escuros e revoltos pelos ombros e um sorriso galante que mantinha sua cama sempre aquecida por qualquer fêmea em que debruçasse seu charme. Elisa nutria profunda antipatia por aquele jeito leviano de cavaleiro-mor, daquela arrogância para quem a sorte sorria vezes demais. Desvencilhou-se de suas mãos garantindo-lhe que estava bem e correu a tempo antes que uma de suas garras enormes lhe apalpasse os seios disfarçadamente.
Correu para a capela em busca de algum conforto. Ajoelhou-se na pedra fria, sentindo um certo prazer naquela dormência que ia subindo pelos joelhos acima até chegar-lhe em seu sexo. Padre Jacques que havia observado o furacão de Elisa, pousou sua mão torta e velha sobre os cabelos negros que serpenteavam até a cintura. Tomada de assalto, seu peito disparou como se a simples presença do padre, aquele que de certa forma a criara como uma filha, a desnudasse todos os pensamentos em revelia. 
- O que houve minha filha?
Elisa aspirava silêncio, contida e ofegante ao mesmo tempo. Sua face ruborizada de ódio e culpa. Por alguns instantes bastou olhar para a cara de madeira da Virgem, rodeada por anjos gordos e sem expressão. 
- Acho que eles não nos ouvem.
- Como? Quem não nos ouve criança?
- Padre...porque tanto sofrimento, porque tenho os joelhos ardidos pela senhora Albertine que nos castiga e se ri que nunca iremos aprender uma vírgula que seja, um número para fazer contas à capas e mantas...e se é para isto que servimos, que somos nada além de vasos a gerar vida, preciosos quando as há e vazios e sem valor quando parimos, para que viver?
O velho arqueado gentilmente cedeu o lenço branco e começou a enxugar as lágrimas que brotavam vindas de um poço muito fundo da alma. Sacudia a cabeça e sentiu-se grato por mesmo às escondidas lhe ter ensinado a ler e escrever, sendo um segredo que por certo lhes custaria a vida de ambos caso alguém o suspeitasse. Depois de notar que os soluços se espaçavam, ajudou-a a levantar-se e sempre com as mãos paternalmente nos ombros a levou a sua humilde biblioteca na sacristia. Retirou um volume de capa carmim e quase desfeito em pó e lhe depositou nas mãos em concha. 
- Toma minha filha. Aqui está uma coisa para distraíres-te.
Elisa olhou novamente em redor, confirmando que não havia ninguém por perto e depositou em um gesto rápido, o precioso contrabando sob um bolso em sua capa, costurado para este fim.
Sorriu e fazendo uma pequena vênia, beijou-lhe agradecida as veias saltadas das costas de sua mão. Em um movimento brusco soltou-se do padre e desapareceu pela escuridão da igreja rumo ao céu aberto.
Órfã de pai e mãe em tenra idade, fora criada pela família Castel, um pouco mais abonada que a sua própria, porém muito longe de ser rica. Cresceu mais para servir do que para ser uma filha legítima da casa e era constantemente lembrada da sorte que tivera por isto. Era a primeira a levantar-se e a última a deitar, garantindo que tudo estivesse conforme seus tutores gostavam. Sempre que podia escapava para a igreja com a desculpa de rezar, no entanto era nestes pequenos e raros momentos que aprendia a magia de desenhar sentimentos. Lembrava-se agora da conversa tida outro dia com o padre sobre o que fazer de sua vida. Finalmente tinha tido coragem para relatar os assédios constantes de Stephane, inclusive de sua tentativa frustrada de violá-la a caminho de casa. Jacques mirou-lhe com as bolsas de cansaço por baixo dos olhos trêmulos, sorria tristemente quando lhe disse:
- Criança...o que esperas da vida? Case, já estás em tempo de traçar o teu destino. O que será da tua velhice sem filhos que olhem por ti? Se entretanto preferires o convento, posso indicá-la para a madre Justine...
Elisa puxava as mangas do vestido obstinadamente enquanto balançava a cabeça em negativa. Jacques lhe afirmara para casar com Stephane que não era tão mau assim, era um homem como os outros e que qualquer dia ainda podia-lhe pegar desprevenida e conseguir ter sucesso em seus desejos. Mais valia ser sua esposa e ter sua própria casa, quem sabe com um ou dois criados para ajudarem-na. Era uma vila pequena, em um reino por sua vez não muito extenso e Stephane sempre dava jeito de se por em seu caminho. Havia tomado uma decisão, só não sabia se escutava ao padre ou seu próprio desejo disfarçado de ódio.

* Trata-se de um auto-plágio: despudoradamente inspirado em um sonho que tive.

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