domingo, 29 de dezembro de 2013

Elisa (parte final)

Stephane acariciou o rosto de estátua da mulher. Tinha os cabelos negros espalhados pelas costas que desnudavam apenas parte dos seios. Passou a mão pela cintura, pelas coxas que o tempo tinha tratado de tornear. Já não era mais a menina assustada que ele havia tomado a virgindade. Ela soltou uma palavra indecifrável e virou-se para o outro lado. Ele voltou a cobri-la com cuidado, lhe pedindo perdão enquanto o fazia. Passou pelo berço onde dormia seu filho e admirou quem sabe pela última vez, o sono tranquilo do bebê. Retirou o anel, presente do rei  quando salvara-lhe a vida, e depositara em cima da mesa ao lado do jarro d'água. Não havia conseguido dormir nada depois que fizeram sexo, passou a maior parte do tempo vigiando os suspiros que Elisa soltava durante o sono. Mas já era tempo de se ir, vestiu-se e amarrou com cuidado o saco de moedas de ouro em uma bolsa na sela do animal. Deixou algum dinheiro sob o colchão na esperança que a esposa o achasse antes de trocar a palha. Porém temia que tal não fosse necessário, provavelmente Philippe lhe tomaria a propriedade, dando-a para quem lhe trouxesse sua cabeça. Rezava para que poupasse a vida da mulher e da criança, que nada tinham a ver com sua traição e parecendo que não, o fato de ir sozinho ao invés de um ato de egoísmo, era a melhor forma de garantir a segurança de sua família. Era  ele quem o rei queria e levá-los só o atrasaria, tornando o trabalho deste mais fácil. Ao menos Vianca teve a amabilidade de mandar sua aia de confiança avisá-lo há três dias. A mulher trazia nos olhos azuis o medo da rainha. Trêmula lhe implorava para que fugisse e salvasse sua vida. O rei havia demonstrado nos últimos tempos o quanto estava desgostoso com a origem do herdeiro. 
Stephane nunca soube o quão providencial fora a decisão de partir no meio daquela noite de lua cheia, em que conseguiu pela claridade, tomar atalho fora da estrada real, sempre com cuidado para não ser surpreendido por algum grupo de ladrões. Fora vestido com roupas simples para passar-se por um  mero camponês, embora tivesse de ter cuidado constante para ocultar o porte imponente de cavaleiro real. Encurvou-se sob a capa de lã e galopou até o dia virar noite novamente, só parando para deixar o animal tomar água.
Quando Elisa viu o homem baixo e calvo a entrar em sua casa, ficou por instantes atordoada. Marie pegava a criança que chorava lá dentro e ela ao ver o brasão da casa Gautier rapidamente percebeu de quem se tratava e fez uma vênia meio atrapalhada pelo susto. 
- Em que posso servir meu Senhor?
- Procuro por Monsieur Stephane. Diga-me onde ele está. - Falou rispidamente a cuspir-se o rei. Elisa levantou o rosto e evitou limpar a saliva que ele lhe tinha jogado.
- Juro pela Virgem, não sei onde ele está. Pensei que era a notícia de sua morte que me traziam. Faz dois dias que não o vejo. Por favor meu Senhor, se souberem do paradeir... - Philippe retirou a mão para que a mulher não a beijasse. Virou-se para os homens que naquele momento voltavam para os cavalos não tendo achado indício nenhum do traidor:
- Peguem esta mulher e a criança também!
Dois homens grandes e fortes a carregaram para a garupa de um, não fazendo qualquer esforço frente sua resistência concentrada em um metro e cinquenta de raiva e medo. Outro arrancou das mãos da criada o menino em prantos. Foi com o olhar desfocado que viu por entre lágrimas, a casa de pedra e janelas exíguas ficar cada vez menor no horizonte e apesar de não enxergar mais nada, sabia que Marie ficara em pé, toldada de surpresa e choro. As lágrimas inofensivas, além de às vezes a própria vagina, eram infelizmente as únicas armas de uma mulher.
Elisa fora jogada e trancada juntamente com Dominic em um dos quartos de hóspedes do castelo. Não lhe falaram nada, nenhuma explicação para os tratarem como cães, mas desconfiava que aquilo só podia ser coisa de Stephane. O que havia aprontado para o rei? Roubou-lhe algo? Ao cair da noite, uma criada entrou com uma bandeja de sopa e um punhado de pão para dividir com o pequeno. Trouxe mais tarde, panos e água morna para lavar o bebê que já tinha se borrado pelas pernas, e permaneceu na tarefa calmamente enquanto Elisa comia o resto da sopa. Depois agarrou no menino e ia abrindo a porta quando a mulher lhe puxou o braço. A criada apenas balançou a cabeça com olhar maternal, como a dizer, não adianta de nada minha querida e garantiu-lhe com um olhar de ternura que não maltrataria Dominic. 
Elisa sentou-se na cama com o olhar fixo na lareira, as paredes eram tão frias e úmidas que tinham de acendê-la o ano todo. O fogo levantava labaredas como um réptil a alçar as pedras enegrecidas pelo tempo, encolhia-se e espreguiçava ao sabor da brisa que entrava pelas frestas da janela. Do outro lado do aposento, uma vela morria aos poucos iluminando palidamente o leito e a mesa onde se encontrava. A porta abriu-se de assalto, tirando a moça de sua hipnose voluntária pelas chamas. Philippe puxou-lhe os cabelos e enfiou a língua para dentro de sua boca. Empurrou-a para cama sem dizer nada e ela em um mutismo resignado, deixou que ele amargasse a raiva em seu corpo por uma e outra vez. Foi assim durante todas as noites em que a manteve em cativeiro, deixando que visse seu filho apenas em raros momentos. Até Elisa notar a falta de seu período, e por ironia, a prisão que lhe tinha sido a gravidez anterior, fora o que a libertou desta vez. Pôde enfim andar pelos corredores e frequentar os jardins internos do castelo. Olhou para  o céu que se abria para o sol fugaz da manhã. Nos bancos, perto da estátua de um querubim, estavam duas mulheres a conversar animadamente e aos seus pés, Dominic brincava com outro menino mais novo. Elisa aproximou-se devagar, e à medida que o fazia, envergava um sorriso do tamanho da ansiedade que estava de pegá-lo ao colo. Já falava e corria com a audácia que os dois anos traziam às crianças. As duas cabeças escuras a balançarem os caracóis passaram em sua direção aos guinchos de alegria. Elisa estacou ignorada no meio, mas pode surpreender-se com o rosto muito semelhante dos dois. Foi então que entendeu o porquê de tudo aquilo. Os olhos da rainha, duas pedras jade a observá-la, convidou-a a sentar-se ao seu lado, certa de que apenas naquele momento a jovem tomara conhecimento da verdade. Elisa sem saber de si, assentiu e deixou que a outra pegasse em sua mão e entrelaçasse os dedos nos seus. 
- Fernand e Dominic serão grandes amigos. - Ainda achando a situação caricata demais para ser real, Elisa preferia o silêncio. - O Senhor Philippe não desistiu de procurar por Monsieur Stephane, mas irá...com o tempo. Já enforcou metade da vila que ousou duvidar de minha fidelidade e o resto acabará entendendo que isto é muito melhor do que deixar o reino dilacerado por não ter sucessor. Acalma-te, criança. - Ao ver que ela chorava sem conter os soluços, Vianca puxou-a para seu colo. - Vai ficar tudo bem. Que seria de nós mulheres se não nos aliarmos umas com as outras? Philippe já lhe fez um filho, estão quites os dois. Calma...calma....pshhhh....eu sei...vai ficar tudo bem... 
Elisa chorava pelo filho sem nome. Chorava por ela mesma, virada em concubina do rei,  sem casa e com um marido traidor da coroa, chorava por seu ventre agora transformado em instrumento de vingança. Chorava por não ter escolhido o convento e por saber ao mesmo tempo que a outra opção não seria tão melhor que aquela. Chorava porque tinha a certeza que choraria até o dia de sua morte e que possivelmente nem ela lhe livraria de tal maldição, a de não ter nascido com um membro entre as pernas. E era ridículo como um pedaço tão pequeno de carne, fazia tanta diferença na liberdade de alguém. E chorava...



* Como tinha dito, esta história foi baseada quase que totalmente em um sonho que tive e é uma pena que tenha acordado sem saber o que houve depois disto. O que aconteceu com Stephane, com Elisa e Dominic, se voltaram a se encontrar, se fugiram, se o mataram...não sei. Ficou apenas a insatisfação das histórias sem final e o marido sabe como fico quando assisto um filme assim.



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